O ex-ministro Roberto Amaral alerta para o perigo de Jair Bolsonaro transformar o país em uma província talibã. “Se realizar o prometido, assistiremos a cenas dignas dos fanáticos do Estado Islâmico”, escreve.
O Brasil não pode virar uma província Talibã
Roberto Amaral*
O governo do capitão Messias ameaça mergulhar-nos de corpo inteiro em regressão mais profunda do que aquela que parece acometer o mundo ocidental sob o comando de Trump, seu grande ídolo e inspirador, depois do cel. Brilhante Ustra, o facínora. Se realizar o prometido, assistiremos a cenas dignas dos fanáticos do Estado Islâmico. Reviveremos situações registradas sob o nazifascismo. Experimentaremos as práticas do macarthismo, que agrediram as noções de civilidade firmadas após as catástrofes das guerras mundiais. Mergulharemos na era do ódio à inteligência, como sofreram os espanhóis sob os falangistas.
Viveremos abomináveis perseguições aos escritores, artistas, educadores e cientistas; enterraremo-nos na macabra ofensiva contra a liberdade de expressão, incompatível com as noções de civilidade às quais nos acostumamos – ou quando, menos, aspiramos – na segunda metade do século XX.
Os fundamentalistas de todo jaez detestam a dissonância, o outro, o diferente. Quem discorde de suas proposições é considerado estrangeiro na pátria de que esses senhores se julgam donos. Podemos, assim, retornar ao “Brasil, ame-o ou deixe-o” dos anos 70, copiado do obscurantismo que tomou conta dos EUA e que desembocou, naqueles idos, na estúpida guerra contra o povo vietnamita.
(Não nos esqueçamos de que uma rede de televisão comemorou a vitória do capitão reeditando o slogan infame.)
Na contramão do interesse do país e de sua gente, o capitão anuncia, para além de perseguição político-ideológica, o corte de recursos destinados às universidades públicas, a cobrança de mensalidade em instituições federais e progressiva introdução do ensino à distância (por natureza dissociativo) em substituição ao ensino presencial, “foco das pregações marxistas”, segundo esses desatinados.
O anunciado ministro da Educação, cuja existência intelectual só agora se fez conhecida, não fala em mais recursos para sua pasta, não indica metas para a expansão e melhoria do ensino universitário, da pesquisa e da inovação, sem o que este país não conhecerá o desenvolvimento a que seu povo faz jus. Em seu delírio, o ministro vindouro recita o catecismo da futura administração, cujo centro ideológico é a “escola sem partido”, em substituição à escola que ensina o aluno a pensar, a criticar, a descobrir, a inventar.
O objetivo da educação não seria mais o preparo de jovens para a cidadania, o trabalho, a vida; não teria mais como objetivo a compreensão do papel do indivíduo na construção do mundo (Non scholae sed vita discimus, ensinavam os romanos), mas a superação de uma suposta ‘doutrinação bolivariana’ de índole cientificista, que inocularia em nossos estudantes o vírus da anti-família e da antisociedade, do anti-Deus, da antirreligião e do anti-criacionismo.
Assim a má-fé e a ignorância marcham de mãos dadas.
Para o anunciado novo ministro das Relações Exteriores, a Revolução Francesa foi um projeto comunista avant la lettre; a globalização, uma artimanha maoísta; o aquecimento global não passaria de invenção do “marxismo cultural”. O “Ocidente” estaria em perigo e sua salvação dependeria do sucesso de Donald Trump, de cuja geopolítica belicista logo se põe a serviço, em miserável genuflexão, jogando no lixo uma tradição de dignidade que remonta ao Barão de Rio Branco: a da Política Externa como projeção dos nossos interesses e de nossa soberania.
Regressamos – o que até há pouco parecia inimaginável – aos tempos do general Juracy Magalhães, embaixador de Castello Branco e da ditadura militar em Washington, a quem se deve essa joia de vassalagem: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.
O futuro chanceler é um poço sem fundo de anacronismo e paranoia. Suas tiradas sem cabimento expõem o país ao ridículo. Sua pauta de atuação, declara em artigo na Gazeta do Povo é o combate das “pautas abortistas e anticristãs” e das tentativas de “destruição da identidade dos povos por meio da imigração ilimitada”. Promete extirpar da Política Externa a defesa da “laicidade” e da diversidade, a contestação do patriarcado e da diferenciação dos sexos, bandeiras que conjuga sob o conceito de “antinatalismo” – que, alienista alienado, acredita ser uma invenção da esquerda.
O capitão, seu chefe, na cediça linha de antecipar serviços à Casa Branca, proclama a filiação brasileira à política anti-China de Trump, ignorando que se trata de nosso maior investidor (e dizem que as ‘reformas’ visam a atrair capital estrangeiro!) e nosso principal mercado importador; declama desprezo pelo Mercosul, o maior importador de nossos manufaturados, em tempos de gravíssima crise industrial. Pensando em agradar a Trump, ameaça segui-lo nas provocações contra os palestinos, ignorando serem os árabes os maiores importadores de proteína animal brasileira,. O filho deputado, em Washington, na sequência de encontro com Jared Kushner (conselheiro sênior da Casa Branca), anuncia o Irã (depois da China, de Cuba e de Venezuela) como o mais novo alvo de nossa Política Externa. Significativamente, deixa-se fotografar com um boné da campanha de Trump para 2020.
Além de vexame internacional, trata-se da sabotagem de nossos interesses econômicos indiscutíveis.
A condução imperial de nossa política econômica, como sempre, e desta vez como nunca, é capturada pelo rentismo e pelo ‘mercado’, doravante, e mais que nunca, senhores de baraço e cutelo de nossas vidas.
Por sua vez, o ‘posto Ipiranga’, jejuno em gestão pública (já demonstrou desconhecer até mesmo o trâmite da Lei Orçamentária…), anuncia uma privatização geral e universal, sem limites, sem razão, sem nexo, sem preocupação com as responsabilidades sociais do Estado e mesmo sem cuidado com aspectos da Defesa nacional, em que pese a presença dominante de militares nos postos chaves da República e no entorno do futuro presidente. A consequência da privatização irresponsável será a destruição dos últimos instrumentos de atuação do Estado como indutor do desenvolvimento, muitos desses instrumentos montados ao longo de décadas, inclusive com o auxílio dos próprios colegas de farda.
Por trás de tudo estão empresas e bancos de negócios dos Chicago boys brasileiros que integram a equipe do plenipotenciário ministro da Economia, depois de se reciclarem na Fundação Getúlio Vargas e ganharem fortunas no mercado de compra-e-venda de ativos.
Teremos saudades da privataria tucana.
Está em curso um projeto de poder que visa a destruir o futuro autônomo da nação brasileira, fazendo-a retornar aos tempos de Colônia, mero território produtor de matérias necessárias ao consumo das metrópoles: minérios, açúcar, café a que se agregam petróleo bruto, alimentos em grão, e o papel de montador de componentes importados. Esse colonialismo – econômico, cultural, ideológico, militar – prossegue na extração da renda e da riqueza nacionais, relegando-nos à subalternidade frente às grandes potências.
Esse projeto derroga nossos anseios de independência, desenvolvimento e soberania, e acena com um governo guiado por um breviário que sincretiza fundamentalismo pentecostal, regressão política e autoritarismo. Levado a cabo, transformaria um dos mais belos e promissores países do mundo numa província talibã.
Cabe-nos, porém, impedir que o passado se imponha ao futuro e que o atraso derrote o progresso. O caminho é o da organização e da unidade em torno da defesa da democracia e do progresso social, e nosso instrumento de luta, hoje (como foi no passado recente), é a frente ampla, reunindo todos os democratas. Neste momento e em face da grandeza do desafio, a preeminência de divergências secundárias equivale a um ato de traição.
Marielle – Quando conheceremos os nomes dos mandantes de seu assassinato?
*Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia.
Madalena França Via Esmael Morais