Termo foi retirado também de planos municipais e estaduais neste ano; para especialista, excluir a discussão é fechar os olhos para a diferença que ainda existe entre mulher e homem
O Plano Nacional de Educação (PNE), apesar de sancionado em 2014 pela presidente Dilma Rousseff, continuou no holofote em 2015. Isso porque cidades e Estados tinham até 26 de junho de 2015 para implementar seus próprios planos. E o que se viu foi a reprodução do conservadorismo que fez com que, nesses âmbitos locais, os dois temas vetados no PNE também fossem excluídos: identidade de gênero e sexualidade nas escolas.
A retirada foi resultado da pressão das bancadas religiosas, que alegaram que trazer o tema à tona deturparia os conceitos de homem e mulher, destruindo o modelo tradicional de família. Além disso, argumentaram que a discussão do assunto seria dever dos pais e não da escola.
Educadores e ativistas de direitos humanos se manifestaram, mas sem sucesso. Em entrevista ao iG, Luiz Ramires Neto, mais conhecido como Lula Ramires, mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da ONG Corsa (Cidadania, Orgulho, Respeito, Solidariedade, Amor), classifica a retirada dos temas do PNE como um retrocesso e avisa: fechar os olhos para a questão de gênero é deixar intacta a diferença que ainda existe entre homens e mulheres.
Leia abaixo a entrevista completa com o especialista Lula Ramires:
iG: Como você avalia a retirada da discussão de gênero do Plano Nacional de Educação?Lula Ramires: Acredito que essas pessoas estão tentando barrar uma demanda dos próprios alunos e da qual não tem como escapar. Os próprios estudantes vão indagar os professores com perguntas em relação a essas coisas. Hoje, ninguém é impedido de trabalhar esses temas. O que a gente não tem é a legitimidade, que haveria se o assunto tivesse sido incluído no PNE. É um retrocesso, uma derrota, mas acho que a gente tem de fazer desse limão uma limonada. Vamos continuar trabalhando com as pessoas com as quais a gente sempre trabalhou. O problema dos fundamentalistas é que eles querem tirar os meus direitos – de não ser discriminado, de não ser agredido, de a minha relação ser reconhecida pelo Estado – com base na crença deles. Os conservadores não vão ter como ignorar, porque isso vai surgir de qualquer maneira. A gente vive num mundo em que a questão da sexualidade está colocada e que precisa ser discutida.
iG: Uma das justificativas dos contrários à inclusão do tema no PNE era a de que o Estado deixaria de ser laico se a questão do gênero fosse abordada nas escolas. Isso faz algum sentido? Lula Ramires: Hoje a gente está vivendo um momento de radicalismo conservador, de que alguns grupos sociais estão verdadeiramente histéricos, fazendo uma gritaria, como se fosse o fim das famílias e dos valores, o que é uma grande bobagem. Estamos em um mundo realmente em crise e que precisa discutir várias coisas. Mas o problema desses grupos é que eles querem impor ao resto da sociedade os valores que são originários da crença da religião deles. Isso mostra que o que está faltando no Brasil é exatamente a ênfase na questão do Estado laico. Acreditar que a humanidade vai desaparecer porque só tem gays e lésbicas é uma forma de autoritarismo, de querer controlar a vida do outro. O que está em jogo é a liberdade individual das pessoas, delas poderem assumir aquilo que as fazem feliz.
Quando a escola aborda a questão de gênero numa perspectiva plurarista, ela mostra ao aluno que tudo o que existe na nossa sociedade são construções culturais, e que elas mudam ao longo do tempo. Dar essa perspectiva histórica ao aluno, de que nem sempre foi assim e nem sempre vai ser assim, faz com que eles reflitam e aí, sim, se tem um ganho progressivo de liberdade, de autonomia, que são características importantes. Discutir gênero e sexualidade é colocar o aluno e a aluna nesse universo que a gente está vivendo e se esquivar daquela coisa de valores que são mantidos simplesmente porque sempre foi assim.
iG: Os deputados que tiraram a palavra ‘gênero’ do Plano também afirmavam que esse assunto deve ser ensinado pelos pais e não pelas escolas. O que você acha disso?Lula Ramires: Esse é um argumento muito falacioso, porque a escola é um espaço público e nesse espaço nós vamos ter crianças e adolescentes de diferentes famílias, com diferentes valores. A gente precisa aprender a conviver com essas diferenças. É certo que a família tenha de falar do assunto, mas a escola tem de ser mediadora para que no futuro não haja conflitos e violência em função de alguém sentir por conta de valores religiosos ou por acreditar que, em nome de Deus, que pode bater numa mulher ou agredir um homossexual.
iG: Além da questão da liberdade sexual, discutir gênero é uma forma de combater a violência contra a mulher e a discriminação, não é?Lula Ramires: Sem dúvida. Se você comparar com a questão do racismo, hoje a gente tem uma legislação muito forte e rigorosa, é considerado crime inafiançável no Brasil. Mas isso ainda não é verdade em relação às mulheres. Você vê muitos programas cômicos tratando a mulher como objeto e não tem uma legislação específica para isso. Temos a questão da Lei Maria da Penha para violência, mas é lei para punir quem tiver sido violento com uma mulher.
É a mesma coisa com a homofobia. Contar piada de gay, de bicha, de travesti ainda é uma coisa que as pessoas fazem tranquilamente, porque sabem que não vai causar nada. No caso dos homossexuais, não há uma proteção especifica porque todas as tentativas de criminalizar a homofobia também foram barradas no Congresso. Tem uma situação interessante, porque o Judiciário tem uma postura mais avançada, tem muitas decisões de juízes ou de tribunais que reconhecem os direitos dos homossexuais, mas infelizmente temos um Congresso que deu as costas para essa questão.
iG: Quais seriam as consequências de uma educação que não aborda as temáticas relacionadas à igualdade de gênero?Lula Ramires: É manter a situação que está, fechar os olhos. Sem discutir gênero, os homens vão continuar indo para as carreiras mais prestigiosas, melhor remuneradas, e as mulheres seguem nas profissões consideradas “femininas”, com reconhecimento social e remuneração muito inferior. Do ponto de vista da homofobia, continua-se dando combustível para que homossexuais sejam desrespeitados, sofram agressões físicas, sejam assassinados e assim por diante. Por outro lado, a escola só vai discutir se a sociedade se conscientizar de que esse é um tema importante.
iG: Hoje temos uma juventude muito mobilizada, que sempre está indo às ruas. Agora que os alunos descobriram têm voz, será que não deveria haver uma mobilização para esse tema ser abordado nas escolas?Lula Ramires: Concordo inteiramente com você. A partir dessa mobilização dos estudantes, haverá mudanças na postura dos professores, da direção escolar e no conteúdo que é ensinado, e fatalmente vai cair nas questões de gênero e sexualidade.
Até porque uma das características muito interessante da mobilização aqui em São Paulo é a forte presença e liderança das meninas. Tempos atrás, se você lembrar das mobilizações sociais como o movimento pelas Diretas e as greve de sindicato, os expoentes sempre foram masculinos. Agora, de repente, você vê umas meninas boas de briga e que não vão se calar. Essa menina que assume papel de protagonista não vai se encaixar naquele modelo que prega que a função dela é cuidar do marido, dos filhos e da casa. Vai ter de surgir alguma outra coisa porque esse modelo se esgotou. Por isso, acredito, sim, que a mobilização dos estudantes vai trazer outras mudanças importantes, para dentro e fora da escola.
Até porque uma das características muito interessante da mobilização aqui em São Paulo é a forte presença e liderança das meninas. Tempos atrás, se você lembrar das mobilizações sociais como o movimento pelas Diretas e as greve de sindicato, os expoentes sempre foram masculinos. Agora, de repente, você vê umas meninas boas de briga e que não vão se calar. Essa menina que assume papel de protagonista não vai se encaixar naquele modelo que prega que a função dela é cuidar do marido, dos filhos e da casa. Vai ter de surgir alguma outra coisa porque esse modelo se esgotou. Por isso, acredito, sim, que a mobilização dos estudantes vai trazer outras mudanças importantes, para dentro e fora da escola.