Infectologista que acompanhou os 12 primeiros casos da doença (ainda enigmática) na Bahia, Antônio Bandeira, 54 anos, investe em duas hipóteses (vírus ou toxina) para explicar o mistério que intriga os médicos e a população. “Tem nada a ver com o Aedes aegypti”, diz Bandeira, nesta entrevista exclusiva à jornalista Cinthya Leite.
Em Salvador, o senhor acompanhou os primeiros casos de mialgia aguda a esclarecer. Qual foi a sua primeira impressão ao ver os pacientes?
Vi e identifiquei os primeiros casos. Começamos a acompanhar pacientes no fim de novembro de 2016. Vimos uma família de quatro pessoas em Salvador. Todas acometidas com o mesmo sintoma. Começaram com fortes dores no pescoço, dores musculares (chamadas de mialgia aguda)… É como se o indivíduo tivesse carregado bastante peso e corrido muito. Começa de forma intensa, como se fossem aquelas dores musculares, no pescoço, na região do trapézio, indo para os braços, as pernas e as panturrilhas. Todos os pacientes chegaram com esses sintomas e enzimas musculares muito aumentadas, o que mostra uma lesão aguda da musculatura. Para se ter ideia, uma das enzimas que a gente mede é a CPK (sigla para creatinofosfoquinase), cujo valor de referência é 170. Esses pacientes tiveram CPK que variou de 10 mil até 113 mil. Todos ficaram internados. Uma senhora teve CPK de 113 mil, apresentou insuficiência renal e ficou internada por 11 dias. Os outros três tiveram alta hospitalar em quatro dias. Entre essas quatro pessoas da mesma família, três tiveram urina bem escura. Na sequência, chegaram duas famílias (com os mesmos sintomas); cada uma com três pessoas. Também foram internados.
Como as autoridades de saúde foram notificadas?
Quando as duas famílias apareceram, imediatamente notificamos (às vigilâncias de Saúde municipal e estadual) porque notamos que se tratava de um doença nova que estava ocorrendo (quadro de mialgia aguda). Começamos, então, a fazer coleta de material, incluindo sangue, urina e fezes dos pacientes. Uma médica que teve esse quadro me ligou. Ela disse que tinha ingerido peixe, como vários outros pacientes. Eles tinham consumido o peixe olho-de-boi. Mas esses pacientes não tinham mais amostra para liberar, e essa médica tinha. Então, conseguimos segurar a do peixe que ela comeu; ela tinha congelada uma parte ainda crua e passou para a gente. Ela comprou esse peixe no Litoral Norte da Bahia e levou para Salvador. Comeram ela e a empregada. A filha pequena não gosta de peixe, praticamente comeu nada. A médica e a empregada apresentaram o quadro (de mialgia), e a filha não teve. Elas comeram o peixe no almoço e, às 22h, tiveram sintomas. Encaminhamos essa amostra, através do Ministério da Saúde, para os Estados Unidos. Estamos esperando resposta. Ao todo, meu grupo em Salvador acompanhou os 12 primeiros casos da Bahia. As vigilâncias estadual e municipal de Saúde fizeram o alerta da mialgia aguda a esclarecer no dia 14 de dezembro de 2016.
Como estão as investigações?
Nós temos amostras (de fezes e urina dos pacientes) que foram encaminhadas ao laboratório do professor Gubio Soares (virologista da Universidade Federal de Bahia). Ele tem encontrado alguns vírus. Ainda se aguarda identificação. Trabalhamos com duas hipóteses: quadro viral ou contaminação através de uma toxina pelos peixes. Ambas as situações (vírus e toxina) podem evoluir com mialgias agudas. Uma delas é a epidêmica, causada por Enterovírus e Parechovírus; a outra é a síndrome de Haff, que também é uma mialgia aguda, mas causada por toxina. Então, esse tipo de quadro pode ser causado por vírus e toxina.
Pode ser um vírus novo no Brasil?
Se for um vírus, ele certamente seria novo no Brasil e teria entrado (no País) como o zika; alguém teria trazido o vírus de fora. Hoje há muita mobilidade. E existe o Parechovírus, que já provocou surto na Dinamarca e no Japão. As pessoas, a toda hora, estão viajando e podem ter trazido o vírus para cá também.
Há relatos de que, entre as três pessoas no Ceará que adoeceram, uma teria passado por Salvador. Isso dá alguma pista para a investigação?
Sendo um vírus como o Parechovírus, daria pista de que realmente a pessoa se contaminou em Salvador e acabou passando para outras pessoas do Ceará. Um colega deste Estado me passou informações sobre esses casos. Ele disse que essas pessoas haviam consumido o peixe arabaiana, que é o mesmo que chamamos de olho-de-boi na Bahia. Então, é importante também levantar essa questão. São peixes de água salgada.
Se a doença for causada por intoxicação alimentar, é mais difícil de ser disseminada do que uma doença transmitida por vírus?
Se for por peixe (toxina), (as condutas, o foco de prevenção e ações) envolveriam muito mais do que só a área da saúde; envolveriam também a parte de controle de alimentos, a vigilância sanitária. O escopo da intervenção passaria a ser diferente. Se for vírus, a intervenção é de cuidados com as pessoas, o que envolve orientar sobre higienização das mãos, evitar de levar mãos à boca e de ter contatos próximos com as pessoas que estão no período agudo (sintomático) da doença. A transmissão do Parechovírus é geralmente fecal-oral (ou seja, o vírus é eliminado nas fezes do paciente, contamina a água ou alimentos e pode entrar em contato com a pessoa através das mãos).
Como é feito o tratamento dos pacientes?
O quadro é muito agudo, dura poucos dias. Se a pessoa não tiver complicações de saúde e for jovem, por exemplo, em três ou quatro dias (após o início dos sintomas), o paciente fica bem geralmente e vai para casa. Mas, por ter o pigmento que está no músculo (chamado mioglobina, que causa a urina escura e é tóxico para os rins), o paciente pode ter insuficiência renal, ficar mais tempo (hospitalizado) e precisar até de diálise. Houve um óbito na Bahia de um paciente que era cardiopata. Ele acabou indo para a unidade de terapia intensiva, foi entubado, evoluiu para um quadro de infecção respiratória e faleceu. Na realidade, ele morreu das complicações desse quadro.
Como se aliviam os sintomas?
A pessoa tem que se hidratar bastante para não ter lesão renal. Pode usar analgésico, mas deve evitar o uso de anti-inflamatório, que pode precipitar um problema renal. E também deve procurar uma unidade de saúde diante do quadro de dor muscular aguda iniciado de forma abrupta. É preciso ter a enzima muscular (CPK) dosada, o que é feito em qualquer Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
Com o Carnaval, há uma circulação maior de pessoas. Há alguma medida que possa ser adotada para prevenir casos nesse período?
Higienizar bem as mãos sempre e não levar algo (ou alimentos) à boca sem antes lavar as mãos. A gente ainda não conseguiu descartar totalmente a possibilidade de intoxicação alimentar.
Alguns dos pacientes consumiram peixe de água salgada antes dos sintomas. É preciso cuidado com a ingestão do alimento?
Se (a causa) for toxina (do peixe), ela não é alterada com fritura ou cozimento. Agora nenhum outro fruto do mar está implicado nisso. Camarão, lagosta, polvo, caranguejo: nada disso tem relação com o que a gente está falando. A princípio, estamos focalizando mais no peixe.
A dor muscular é mais comum do que a urina escura nesses casos?
Dos casos que acompanhamos, 60% tiveram o quadro e não tiveram urina escura. O que é mais característico mesmo é a dor muscular intensa. É como se a pessoa tivesse feito musculação ou exercício aeróbico de forma intensa em quinze segundos. Começa abruptamente com aquela dor forte no pescoço, um torcicolo enorme, uma dor forte que vem para os braços e rapidamente o indivíduo está se acabando de dores nos músculos. Há pacientes que não conseguem andar.
Há quem pense que os sintomas são semelhantes ao da chicungunha…
Chicungunha é dor articular. Estes casos de mialgia não mexem com a articulação. O sintoma começa intensamente: em poucas horas, a pessoa está arrebentada de dor, mas já vai melhorando após 24 horas. E com três, quatro dias, está muito melhor. Assim que vimos os primeiros pacientes, sabíamos que tinha alguma coisa errada. Será que é alguma arbovirose? Será que é zika se manifestando desse jeito? Achamos estranho as elevações de CPK e o fato de os sintomas se apresentarem em quatro pessoas de uma só família ao mesmo tempo. Os pacientes fizeram exames para zika, chicungunha e dengue. Foram negativos. Pode ter certeza: tem nada a ver com o Aedes aegypti.