O que há de errado no Brasil é a falta de espelhos – também os retrovisores.
Assim, um país que tem a maior parte de seu território ocupado por populações de origem matriarcal indígena e africana– descendentes do processo de miscigenação que caracteriza sua história – inventa que se divide entre “brancos” e “pretos”, só porque a elite, a mídia e as escolas deixam-se tutelar por norte-americanos, que, como declarou o presidente Bolsonaro, “resolveram esse problema” exterminando 10 a 12 milhões de índios no Século XIX.
Para explicar o fascismo atual, é fácil atribuir a culpa a raízes coloniais – na verdade, bastante diversificadas nos diferentes ciclos econômicos –, quando é visível que ele se apoia principalmente na descendência de famílias imigraram da Itália, Alemanha, Portugal e alguns outros países europeus no período que vai do início da Primeira Guerra Mundial ao fim da Segunda Guerra – alojados, em maior número, no Sul e Sudeste do país. Inadaptados e confinados em guetos culturais, cuidam de impor seus valores aos demais, que se deslumbram.
História é processo caótico em que se embaralham cadeias de eventos.
Como o que caracteriza o evento histórico é o conflito – de classes, tribos, nações, culturas, ideologias – haverá duas ou mais narrativas para cada cadeia de eventos e, no mais das vezes, uma delas dominará.
A narrativa é a forma pela qual habitualmente se acessa a História. Trata-se de construção que obedece a um dos esquemas lógicos dos discursos humanos: os fatos dispõem-se em sequências, costuradas pela relação implícita de causa – o consequente resula do antecedente; personagens – ou, mesmo, circunstâncias – sujeitam-se à atribuição de culpa. As sequências justapõem-se como que ao acaso, cabendo ao receptor do relato estabelecer conexões.
Ocorre que causa e culpa são invenções dos homens, que não existem no mundo; pressupõem consciência da situação e livre arbítrio, ambas condições historicamente determinadas e, geralmente, fora de controle dos personagens do relato que se faz em outro espaço e tempo. Tudo se resumiria, então, a questões de ética pessoal.
São duvidosos juízos de valor formulados sobre eventos históricos envolvendo causas e culpas – até porque, se os fatos relatados fossem outros, o efeito multiplicador devastaria o mundo real de quem conta a História.
Quem conta a História e quem a escuta são guiados pelo aqui-e-agora. Não por acaso, Henri Pirenne recontou desde o início islâmico a história medieval europeia justamente quando, prisioneiro na Primeira Guerra Mundial, via o sonho europeu estrebuchar nas trincheiras e desfazer-se o Império Otomano, herdeiro decadente do apogeu árabe.
No entanto, as motivações humanas no passado podem não ser aquelas que, hoje, agradaria imaginar. A distribuição de terras a famílias de negros e índios, por exemplo, pretendida por José Bonifácio de Andrada, o naturalista preceptor de Pedro II, e que, para horror dos conservadores, empolgava sua filha Isabel, herdeira do trono, não era um projeto humanístico, mas político: pretendia colonizar vazios do Oeste – em Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Mato Grosso –, elevar a produção agrícola e impedir que os escravos, que inevitavelmente se libertariam acorressem e se aglomerassem nas cidades, como, de fato, aconteceu na República.
Teria sido medida progressista, alternativa ao “branqueamento”, mas despida da aura de generosidade que às vezes lhe emprestam. Não houve, e isso, pelas vias caóticas da História, confluiu para a formação da massa consciente que clama por seu protagonismo, para o deslumbramento de nós todos, nos carnavais do Rio de Janeiro
São esses foliões que têm feito subir ao alto da página os heróis dos rodapés dos livros – a Chica da Silva, Sepé, o Zumbi dos Palmares e sua Dandara –, e projetaram cenários – o Cristo Mendigo, o cativeiro social, o avesso do mesmo lugar. Iluminam ainda, os que, em outro plano, resistem na História, de Mauá a Delmiro, de Getúlio a Lula, de Guararapes aos anos de chumbo.
Preservam uma originalidade que o poder hoje dominante no país esforça-se por suprimir.