A jornalista e premiada escritora Alexandra Lucas Coelho, no jornal Público, de Lisboa, publica intenso artigo sobre o que acontece e o que nos aguarda na educação, não só nos cortes, mas no rebrotar das manifestações da juventude que, daqui a três dias, se unificam num único protesto contra o massacre na educação. E como a rejeição a Bolsonaro atravessou oceanos e fronteiras e vai reunindo o que há de mais importante no mundo que não importa ao presidente brasileiro, o dos que pensam.
Bolsonaro inimigo do Brasil, inimigo do mundo
1. O pior inimigo do Brasil está sentado no palácio em Brasília. É o próprio presidente eleito. Escrevo esta crónica em Salvador, entre vir de Brasília e partir para São Paulo. E em menos de uma semana os crimes são tantos que fica difícil actualizar. Estamos a um ritmo mais do que diário. Bolsonaro é um criminoso horário. A cada hora, é mais chocante para o Brasil, e para o mundo, que esta criatura tenha sido eleita. Foi cúmplice quem contemporizou na campanha, ou não quis ver nem ouvir, apesar de tudo o que estava na cara, e no ouvido. Mas, pior, é cúmplice quem, depois de quatro meses e nove dias de destruição, continua a teimar, ou acena com a legitimidade democrática. Parceiros no crime de um destruidor em massa, serial.
O presidente de Portugal, que tratou Bolsonaro como “irmão” na posse em Brasília, já se escapuliu entretanto de ser fotografado ao lado do infame Moro, na Faculdade de Direito de Lisboa, apesar de a sua presença ter sido anunciada. Imagino que hoje já não seria tão palmadinhas-nas-costas em Brasília. Ou em Lisboa. Mas já não se imagina Bolsonaro em Lisboa, não é? Ou alguém, fora eleitores dele, está tão equivocado que, sim, imagina?
Gostaria de ver, ler perguntas, notícias, sobre como os governantes portugueses estão a encarar isto. O ministro Augusto Santos Silva foi questionado sobre aparecer amenamente ao lado de Moro, como se nada fosse? Alguém perguntou a Marcelo porque afinal não compareceu no encontro onde esteve Moro? Coisas que, à distância, neste périplo, pelo Brasil, gostava de saber.
Chegamos a um ponto em que foi cruzada, sem retorno, uma linha da diplomacia. Para além dessa linha, a diplomacia normal, dos lugares comuns ditos em público, não se aplica, passa a ser cúmplice.
Alguns, cada vez mais, já perceberam isso. O mayor de Nova Iorque percebeu isso, e a sua clareza firme levou Bolsonaro a cancelar a visita. O mayor de Nova Iorque simplesmente declarou Bolsonaro persona non grata. É isso que o mundo tem de fazer. Porque o pior inimigo do Brasil, que está sentado no palácio presidencial, é inimigo do mundo.
2. E o mundo começou a fazer. Mais de onze mil intelectuais das mais reputadas universidades do planeta assinaram uma carta contra Bolsonaro. Concretamente contra o ataque inédito de Bolsonaro à educação, que na última semana se tornou guerra mesmo. Bolsonaro conseguiu, aliás, o prodígio de na mesma semana em que mais atacou a educação facilitar mais o uso de armas. Entre os assinantes do manifesto contra estão académicos de Harvard, Princeton, Yale, Oxford, Cambridge, Berkeley, além das grandes universidades brasileiras, como Universidade de São Paulo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade de Brasília.
Pisei esta semana pela primeira vez a Universidade de Brasília, um campus incrível, verde, sem separação entre cidade e universidade, sem portão, sem muro, sem segurança. Sonho do antropólogo Darcy Ribeiro que — ao contrário do sonho principal de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, planeadores da cidade — está totalmente habitado. A Universidade de Brasília é sonho e é humana. É arquitectura e é gente. A cara de Paulo Freire, mestre de um sonho de educação a quem Bolsonaro também declarou guerra, recebeu-me num cartaz à entrada para o Instituto de Letras. Pelas paredes, cartazes em defesa das ciências humanas, devolvendo a “balbúrdia” a Bolsonaro. Porque uma das pérolas que veio deste governo brasileiro, durante a semana, foi a de que as universidades públicas são antros de balbúrdia, gente nua e marxismo cultural. Entre os cartazes e graffiti contra Bolsonaro, um cartaz com o título “A Queda do Céu”, livro já lendário do xamã ianomami Davi Kopenawa, cartazes em defesa dos povos indígenas, corredores e pátios fervilhando com muitos tons de pele: o Brasil.
Esta semana, o homem sentado no Planalto cortou um terço ou mais dos orçamentos das universidades públicas e institutos federais, estrangulando ou exterminando à partida ensino e pesquisa no Brasil. E, quando a luta de estudantes e professores, pais e mães já saía às ruas, foi anunciado o corte das bolsas de mestrado e doutoramento em todas as áreas, ciências humanas e exactas, da Capes, principal fonte de bolsas no Brasil.
3. Entretanto, todos os anteriores ministros do Ambiente ainda vivos se juntaram, em alarme e protesto, numa frente, para além das diferenças políticas e ideológicas. Acusaram Bolsonaro de pôr “em prática, em pouco mais de quatro meses, uma ‘política sistemática, constante e deliberada de desconstrução e destruição das políticas meio ambientais’ implementadas desde o início dos anos de 1990, além do desmantelamento institucional dos organismos de protecção e fiscalizadores, como o Ibama e o ICMbio”, resumiu o “El Pais Brasil”. Acusam Bolsonaro e o ministro Ricardo Salles de reverterem todos as conquistas das últimas décadas, que “não são de um governo ou de um partido, mas de todo o povo brasileiro”. Marina Silva usou a expressão “exterminador do futuro”.
4. Nessa altura, quarta-feira, já as ruas se tinham enchido, em defesa da educação, de Belo Horizonte a Salvador ao Rio de Janeiro. Secundaristas, muito jovens, defendendo os seus colégios públicos, como o histórico Pedro II, porque o corte não atinge só as universidades, mas sim todos os institutos federais. E universitários, e professores. Quero acreditar que estes quatro meses foram de choque e atordoamento, mas que as ruas que agora se enchem são o prenúncio de uma luta nova, de algo que recomeçou no Brasil. Em 2013, quando muitas lutas explodiram nas ruas, um Brasil ignorante, boçal, autoritário, nostálgico do esclavagismo e da ditadura, começou a capturar a energia do protesto e as redes sociais. Este ano de 2019 talvez seja o recomeço de 2013 no ponto em que 2013 se perdeu. Adolescentes erguendo livros contra gente armada.
5. Mas os próximos tempos serão duríssimos, mesmo que a luta cresça e cresça. Educação, ciência, cultura já perderam, vão perder mais. Neste périplo que estou a fazer pelo Brasil, entre universidades e livrarias, só estar com livros, com debate, com quem estuda, já parece subversivo. Então, mesmo por entre as peripécias da geringonça, gostaria de saber se o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, tem alguma ideia nova para apoiar tantos professores, estudantes, pesquisadores brasileiros, ameaçados de novos perigos. Ou a ministra da Cultura, Graça Fonseca, num momento em que os apoios à cultura no Brasil estão a paralisar, uns atrás de outros.
6. Lembram-se de quem, a propósito do Brasil, do impeachment de Dilma, insistiu que não era golpe? Escrevo esta crónica por entre as imagens do golpista Temer entregando-se à polícia.
Como o Fora Temer parece fazer parte de outra era. De perda de inocência em perda de inocência, ou inconsciência, estamos diante do horror. E os que são jovens agora, tão ou mais jovens que a jovem Greta Thunberg, como os secundaristas brasileiros que há anos já aprendem uma nova luta, cada vez mais sabem que não há outros, seremos nós a mudar isto, ou não haverá nós. Tal como não há planeta B.