Lenio Streck, um dos mais respeitados juristas brasileiros e patrono de uma das Ações Declaratórias de Constitucionalidade que começam a ser julgadas hoje – finalmente – dá hoje, em artigo publicado no site jurídico Conjur, uma aula de enormes clareza e simplicidade sobre o que o Supremo vai começar a decidir hoje sobre a possibilidade de prisão penal antecipada, antes do esgotamento dos recursos.
Não se trata do que eu, você ou qualquer um, inclusive os ministros, “acha”. Trata-se do que está na Constituição.
Aliás, isso deveria ser ouvido por um dos ministros que votou pela execução penal sem trânsito em julgado, Alexandre de Moraes, que disse no seu bate-boca com Luís Roberto Barroso aquilo que está essencialmente em jogo na sessão de hoje:
Vai ficar pelo que a lei estabelece. Nós ainda não somos o Congresso Nacional, ministro Luís Roberto. E não seremos.
Aliás, nem se fossem, porque o Artigo 60 da Carta diz que o texto constitucional não pode ser emendado para eliminar direitos e garantias individuais, que é exatamente do que trata a presunção de inocência.
Juízes não são xerifes de uma terra sem lei, mas de vontades, apenas.
O eclipse da legalidade que este país viveu com o lavajatismo está terminando, é o que se espera.
Curiosamente, a partir de um princípio que foi, tempos atrás, destinado a promover a “Lava Jato”: a lei é para todos.
Inclusive para Lula.
Lenio Luiz Streck, no Conjur
Eis a questão. Qual será a resposta do Supremo Tribunal às três ADC’s que buscam a declaração da constitucionalidade do artigo 283 do CPP?
Para refrescar a memória, vejamos a discussão:
No quadro , vê-se que o artigo da Constituição é o mesmo desde 1988. Já o artigo do CPP é produto de alteração feita pelo legislador em 2011, quando adaptou o texto legal à nova posição do STF acerca da prisão antecipada.
Portanto, não parece haver espaço para dizer que a regra é inconstitucional. Sim, porque, para não aplicar a clareza do artigo 283, só se se lhe declarar a inconstitucionalidade. Mas seria inconstitucional em relação a quê? Eis a questão.
Com efeito, até agora persistiu escassa maioria no STF simplesmente dizendo que o artigo 283 não impede o início da execução da pena tão logo esgotadas as instâncias ordinárias. Mas para dizer isso deveria inquinar de inconstitucional a norma positiva. Mesmo que, ad argumentandum tantum, pudéssemos aceitar que uma Interpretação Conforme a Constituição fosse possível em sede de ADC (o STF até então não havia cogitado disso), o STF teria que dizer, na especificidade, que o artigo 283 fere a Constituição em algum aspecto.
Mas em qual aspecto o artigo 283 não impede o início da execução provisória? É isso que o STF não disse. E por uma razão simples: é impossível fatiar os sentidos do artigo 283. Ou ele permite execução de pena antes do trânsito em julgado (já, portanto, a partir do segundo grau) ou não permite. Tertius non datur.
Resta saber se o STF fará a coisa certa. E fazer a coisa certa é decidir conforme o direito e não conforme os desejos morais da mídia ou de uma opinião pública da qual não se sabe bem o que quer. Aliás, se valesse a opinião pública, a Constituição seria desnecessária. E se valesse a opinião pública, como ela seria aferida? Por IBOPE? Data Folha?
Por que existem tribunais constitucionais mundo afora? Para que possam se colocar, de forma contramajoritária, em desacordo com o canto das sereias.
Salvemos a Constituição fazendo a coisa certa. Fazer a coisa certa não é fazer dilema ético-moral, como no caso de alguém ter de decidir entre matar uma pessoa e salvar dez. Se você acha que pode salvar dez matando um, então vamos pegar você mesmo e, retirando seus órgãos, salvar várias pessoas “mais importantes até que você”. Não seria um bom negócio? Ah, você acha que isso “não é a coisa certa”? Também acho que não.
Com o Direito não se resolve dilemas ou pegadinhas morais. Um direito é um direito. Como faz o médico em House of Cards. O presidente dos EUA é o segundo da fila de transplantes. E o médico não permite que se fure a fila. E diz: It´s the law. Isso é fazer a coisa certa. E sabem por quê? Porque o que vale é decidir por princípio e não por moral ou política ou voz das ruas ou voz da mídia. E qual é o princípio? “Uma vida é igual a uma vida”. Por isso, o direito à presunção da inocência é igual ao direito à presunção. Porque é um princípio. Simples assim. Eis a coisa certa a fazer. Sem dilemas ou ameaças da mídia ou discursos de ódio advindos das redes sociais.
Tribunais não existem para disputar popularidade. Como cidadão, e qualquer um pode pensar assim, pode parecer melhor que se prenda logo após a condenação já em primeiro grau. Ou em segundo.
Mas como jurista, como Corte Constitucional, só se pode fazer o que diz a Constituição! ADC é ação sem cliente. Não tem rosto. A identidade de uma ação constitucional é o texto que se busca esclarecer. E o que se quer nas ADCs 43, 44 e 54 é apenas que se declare o que lá está. Se isso é ruim, se isso desagrada a muita gente, não deve importar.
A Constituição é justamente um remédio contra descontentamentos.
Cartas na mesa, então: ou bem a Corte decide por princípio e veda a prisão em segunda instância – afirmando a clareza do CPP e da CF – ou a Corte faz política e autoriza a prisão. Só tem de assumir qual a autoridade impera no direito brasileiro: se é a dos julgadores ou se é a do Direito.