Vice-presidente da UNE em 1966, quando a entidade se engajava na resistência a ditadura militar, a socióloga Eleonora Menicucci, ministra de Políticas para a Mulher no governo Dilma, diz que "a ocupação das escolas pelo movimento estudantil de 2016 "mostra que o governo Temer não tem o domínio da situação política. A luta continua. Sempre"; em entrevista ao colunista do 247 Paulo Moreira Leite, Eleonora diz que a conjuntura ajuda a lembrar que política é aprendizado e também e didatismo; "Não podemos separar o que aconteceu no dia da eleição de um golpe que vinha sendo preparado e articulado desde 2013. Este golpe é o fator principal para a votação e não aquilo que chamam de 'nossos erros'"; para ela, a luta dos estudantes mostra que é preciso pesar os fatos, analisar e refletir; "Como acreditar que estamos na defensiva, como uma força isolada, quando se sabe que o Lula continua o mais popular presidente da história?"
Na tarde de ontem, quando Eleonora Menicucci, ministra-chefe da Secretaria de Políticas para Mulheres no governo Dilma Rousseff, sentou-se para dar uma a entrevista ao 247, o mapa das mobilizações de estudantes contra a Reforma do Ensino Médio e contra a PEC 241, agora PEC 55, mostrava as dimensões de uma luta gigantesca. Eram 1149 instituições de ensino ocupadas no país: 1016 escolas, 51 universidades e 82 institutos federais, numa mobilização que tende a crescer, mesmo enfrentando medidas de repressão cada vez mais violentas.
"A luta dos estudantes mostra que a resistência democrática continua cada vez mais ativa. Mesmo após as eleições municipais, que representaram uma derrota de toda a esquerda, o governo de Michel Temer está longe de ter o domínio da situação política,"diz Eleonora. "A luta continua,sempre."
Conhecida por uma militância política a favor dos direitos da mulheres e da defesa intransigente da democracia, a feminista Eleonora conhece as lutas estudantis por experiência própria. Estudante do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais, teve uma longa experiência nas mobilizações de sua geração, que marcaram a resistência à ditadura de 1964. Em 1965 foi vice-presidente da União Estadual de Estudantes/MG e no ano seguinte foi eleita vice-presidente da UNE, no Congresso de 1966, realizado em BH. Presa e torturada nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, quando testemunhou a morte do jornalista militante Luiz Eduardo da Rocha Merlino, Eleonora foi companheira de cela de Dilma Rousseff. Professora titular de Medicina Coletiva na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela deu o seguinte depoimento ao 247:
BRASIL 247 -- O Brasil parece viver uma situação política especial. O mesmo país onde a esquerda sofreu uma derrota profunda, nas eleições municipais, assiste a uma mobilização cada vez maior dos estudantes, que resistem a Medida Provisória da Educação e a PEC 241, hoje PEC 55. Recentemente, tivemos a greve dos bancários, uma das maiores da história. Como entender isso?
ELEONORA -- Não há dúvida que o campo da esquerda sofreu uma grande derrota nas eleições. Não foi uma derrota do PT, apenas. Todos os partidos de esquerda perderam, inclusive o PSOL. Essa derrota eleitoral é uma continuação do golpe que afastou a Dilma e se manifesta no plano das instituições. Foi produzida pela judicialização da política, por uma campanha permanente e coordenada de mentiras. O campo democrático perdeu no Brasil inteiro, menos no Acre, São Luiz e alguns municípios do Maranhão e em Fortaleza. Não dá para explicar um resultado dessa dimensão sem levar o golpe em conta, como o fator principal. É fruto de um processo, longamente preparado, articulado, acredito, desde 2013.
247 -- Como explicar, numa situação como esta, que os estudantes estejam engajados em mobilizações importantes, mais amplas do que as realizadas antes do golpe?
ELEONORA -- Eu acho, em primeiro lugar, que não falta motivo para resistir. Os estudantes já perceberam que terão muito a perder e não querem se render. Mesmo mantendo um agudo espírito crítico em relação ao que se fez nos últimos anos, eles não deixam de reconhecer os imensos avanços realizados, as oportunidades oferecidas. Como pensar na formação da cidadania com uma proposta de educação baseada na Escola sem partido?Foi por isso que uma estudante, Ana Julia, foi capaz de dar um depoimento maravilhoso na Assembleia do Paraná, onde limitou-se a dizer verdades que podem ser ditas com serenidade e um sorriso. Outros setores já perceberam essa necessidade, também, como o movimento de mulheres, o feminismo, o movimento sindical do campo e da cidade. Eles também estão engajados, ainda que de forma mais lenta, o que é natural, pois enfrentam situações muito diferentes. A política é sempre um processo pedagógico e, para muitas pessoas, o aprendizado está apenas começando. Muitos chegaram a acreditar que o PT e o governo foram afastados porque cometeram "muitos equívocos." Claro que em treze anos de governo, alguns equívocos aconteceram. Falo dos avanços e acertos. É obrigatório pensar na defesa dos mais pobres, do Bolsa Família, da elevação do salário mínimo. Mas não foi isso apenas. Por exemplo, pela primeira vez implantou-se no Brasil uma política universal de enfrentamento à violência contra as mulheres, desde as Casas da Mulher Brasileira, o disque 180, o combate incessante a cultura do estupro. Não dá para negar avanços importantes no ensino, iniciados na gestão do Fernando Haddad e consolidados com Aloizio Mercadante, que tem autoridade para atuar contra a MP do Ensino Médio e contra a PEC 55. Mas o aprendizado permitirá perceber que fomos afastados por nossos acertos, por aquilo que fizemos de bom para o povo. Este processo pedagógico ajuda a colocar as coisas em seu devido lugar. Mostra que é preciso pesar os fatos, analisar e refletir. Todo o esforço do Temer e seus aliados consiste em tentar colocar na defensiva, como uma força isolada, sem futuro. Mas como acreditar nisso quando a gente sabe que o Lula continua o candidato favorito em 2018 e que segue o mais popular presidente da História?
247 -- A perseguição a Lula, que pode levar a cassação de seus direitos e mesmo a prisão, guarda pontos semelhantes com o processo do regime militar contra Juscelino Kubitscheck logo depois do golpe. Ambos eram os políticos mais populares de seu tempo e representavam uma possibilidade de resistência. Como senhora compara uma situação e outra?
ELEONORA -- Do ponto de vista das consequências políticas, a perseguição ao JK e a Lula são muito semelhantes. Sua finalidade é avançar num processo de consolidação de um golpe de Estado, pela restrição de liberdades e eliminação pura e simples de adversários com lastro popular. A diferença é que Lula tem consciência de seu lugar na democracia brasileira e tem uma visão mais comprometida com o conjunto dos brasileiros. Sabe que seus direitos políticos não representam uma propriedade individual, mas um patrimonio político construído por uma parcela importante da população. Por entender isso, Lula está disposto a resistir e defender seus direitos. Já disse que não vai se entregar nem vai fugir. Vai lutar, inclusive na ONU, um ambiente importante quando é preciso denunciar abusos.
247 -- O que aconteceu com JK?
ELEONORA -- Juscelino pertencia a um grupo de senadores e deputados que se julgava a margem de riscos. Pareciam acreditar que teriam direito a impunidade e jamais seriam perseguidos. Imaginavam que a ditadura não chegaria a eles, embora já tivesse derrubado Jango e mandado Brizola e muitos outros para o exílio. Por isso, nem resistiram a ela. O (Carlos) Lacerda que trabalhou pelo golpe e era seu maior líder civil, imaginava que poderia se tornar presidente com ajuda dos generais. Quando acordou, estava cassado. O Juscelino fez concessões de todo tipo. Chegou a votar em Castello Branco e pediu votos para ele. Foi cassado dois meses e alguns dias depois do golpe. Quando decidiu resistir, com um corajoso discurso na tribuna do Senado, já era tarde demais. Entre políticos de maior expressão no período, o exemplo de resistência foi Tancredo Neves. Não votou em Castello e chamou os golpistas de "canalhas." Mais tarde, quando ocorriam prisões e perseguições de estudantes, fazia questão de nos receber, enquanto estudantes, em sua casa na Praça da Savassi, em Belo Horizonte.
247 -- Como liderança estudantil dos anos 60, você vê semelhanças e diferenças entre as lutas de seu tempo e as ocupações de hoje?
ELEONORA -- É claro que as diferenças são enormes. Na década de 1960, os estudantes com capacidade de mobilização representavam uma parcela pequena da sociedade mas abriram portas para grandes mobilizações. A universidade era um espaço minúsculo, comparado com hoje quando filhos e filhas de familias de baixa renda frequentam as universidades. O ensino secundário possuía lugar para poucos, também. Isso diminuía o impacto social do movimento, que mesmo assim mostrava uma grande força política, como todos sabem. Sem nostalgia, que nunca foi meu modo de ver as coisas, cabe dizer que o ponto fundamental permanece.
247 -- Qual é?
ELEONORA --Os estudantes da década de 1960 e aqueles que estão na luta, 50 anos depois, querem basicamente as mesmas coisas e curiosamente percorrem caminhos muito parecidos. Fazem questão de assumir em suas próprias mãos a responsabilidade pela qualidade do ensino e dessa forma influir desde já no futuro do país. Querem participar e decidir. Não aceitam a ideia de que devem deixar a educação por conta de professores, de diretores de escola, muito menos de governantes.Ficam indignados com o descuido, com a irresponsabilidade. É uma postura que reflete uma preocupação semelhante, que deu origem às comissões paritárias da década de 1960. Num sistema tripartite, com poderes iguais para professores, alunos e funcionários, nós pretendíamos dar conta da reforma do ensino, uma questão que, sem negar os imensos progressos realizados, continua na ordem do dia.
247 -- E os projetos do governo atual?
ELEONORA -- Também não mudaram. No ensino, a perspectiva é a privatização do que for possível e a precarização do resto. Isso vai por conta da PEC 55 e do teto de gastos que na verdade é um poço sem fundo. Na reforma do ensino, a eliminação de área de humanas é um esforço para impedir a formação de espírito crítico dos estudantes, que é o instrumento fundamental de uma educação destinada a formar uma pessoa pela vida inteira e não só para passar num exame no fim de ano. Não vamos esquecer: em 1964, os militares implicavam com o ensino de sociologia e mesmo com a profissão de sociólogo. Outro ponto é a Educação Física. Só o moralismo mais tacanho pode explicar as restrições ao ensino de Educação Física. Numa época em que os cuidados com a saúde são uma prioridade absoluta das sociedades evoluídas, a Educação Física tornou-se uma atividade que cresce em toda parte, em todas as idades. Só o medo da sexualidade explica o receio de que o jovem possa vir a ter noções sobre o próprio corpo. O falso moralismo em ascensão neste governo tem medo, acha perigoso para a juventude.
247 -- Como avaliar abusos contra os estudantes?
ELEONORA -- Há casos de barbárie. Se na década de 1960 havia o CCC, que era um organismo paramilitar disfarçado de movimento anti-comunista, hoje temos milícias que usam a sigla MBL para fazer provocações e atacar as ocupações. Algumas medidas diretas contra o movimento são muito violentas. Cortar água e luz de escolas sob ocupação é um ato de guerra, incompatível com métodos civilizados de governo. Impedir que os jovens se alimentem é um inaceitável. Bons juristas comparam essa medida à tortura. A ordem de que os líderes das ocupações sejam identificados é o primeiro passo para submeter as escolas a um ambiente de espionagem política, típico das ditaduras. Os professores e funcionários, agora, passarão a vigiar as ideias políticas dos estudantes, suas atitudes e seus pontos de vista. Os passos seguintes são a marginalização e a exclusão. Foi assim que o regime militar produziu o decreto 477, que expulsava estudantes acusados de atividades subversivas. Em meus tempos de liderança estudantil, em Belo Horizonte, havia um grupo de 14 estudantes que a polícia vigiava o tempo inteiro. Treze eram homens. Eu era a unica mulher. A vigilância era tão grande que, em meu casamento no cartório, que deveria ser uma cerimônia discreta, para poucas pessoas, havia mais investigadores do DOPS do que parentes e convidados.
247 -- Como feminista e ministra-chefe da Secretaria de Políticas para Mulheres algum fato tem chamado sua atenção?
ELEONORA -- Foram os gritos dos integrantes do MBL: "Desocupa senão a gente estupra." Antes, numa sociedade onde a luta pelos direitos da mulher estavam muito mais atrasados, não havia essa violência sexual, essa banalização de um crime hediondo. É muito preocupante. O estupro continua em 2016, século 21, sendo usado como crime de guerra, desde a primeira Guerra Mundial até os sequestros e assaltos. A sociedade precisa acordar. Não podemos aceitar a cultura do estrupo como se fosse "normal." Para mim, as jovens que fizeram a Primavera Feminista no Brasil, em 2015, tomaram as ruas do país para acendar a luta contra a violência de gênero, denunciar a cultura e a banalização do estupro.