Numa sociedade melancólica de corações partidos e ilusões perdidas, precisamos reaprender a imaginar um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
A nossa época tem sido atravessada por muitos acontecimentos, às vezes de grandes
tragédias. Não raro o adjetivo de “
histórico” é reivindicado antes de o dia acabar. Num mundo globalizado, a aceleração do processo histórico também é globalizada. Do país das calças bege aos Emirados Árabes Unidos, da terra do Tio Sam à terra do sol nascente, tudo parece acontecer mais rápido.
Se non è vero, è vem trovato que nunca a humanidade viveu transformações tão radicais, tão rápidas e tão complexas como as que vivemos na atualidade. Radicais transformações nas percepções do tempo impactam hoje a nossa vida em todos os sentidos e faz com que sejamos capaz de olhar para uma década atrás e conceber esse pouco tempo quase como um passado remoto.
A historiografia, especialmente a que parte de uma perspectiva teórica de cunho marxista, propõe a tese de que esse processo de aceleramento das transformações do processo sócio histórico inicia-se com a
Primeira Revolução Industrial e a
Revolução Francesa. Tem início nesse período e se intensifica no XIX, ao ponto de o XX ser compreendido por
Hobsbawm como a ‘Era dos extremos’. Foi um processo de mudança não só na velocidade com que as coisas se transformam, mas também nas percepções do tempo e da
história. Antes dessas duas revoluções, não se acreditava numa ruptura com o passado. Isto é, as pessoas acreditavam que suas vidas seriam basicamente semelhantes às dos seus antepassados. As revoluções inseriram o coeficiente de mudança na consciência histórica delas.
Paulatinamente, o tempo deixa de ser concebido como estático e o horizonte passa a apontar para um futuro aberto de múltiplas oportunidades. Sapere aude!, brandava
Kant em seu manifesto. Ouse saber! Faça história! Tenha coragem de usar o seu próprio entendimento. No umbral da modernidade, atingir a autonomia intelectual era condição sine qua non da possibilidade do indivíduo emancipar-se. Os indivíduos, especialmente os ocidentais, percebiam-se no direito de escolher seu rumo e sentiam estar caminhando para um mundo melhor (a noção de progresso). Para essa concepção de tempo histórico, preponderante no século XIX, o passado está sendo cada vez mais deixado para trás pela locomotiva da história e o presente é considerado um estado de transição para um futuro repleto de possibilidades.
Ainda permanece conosco a percepção de uma aceleração das mudanças, mas, diante da deterioração da vida que sentimos objetiva e subjetivamente no nosso cotidiano e a expectativa ameaçadora de um aquecimento global, será que ainda acreditamos que o mundo está progredindo para um lugar melhor? Será que ainda acreditamos que podemos fazer história? O futuro ainda é compreendido como uma janela aberta de possibilidades?
A concepção social de tempo dominante na contemporaneidade é outra. O futuro não parece mais aberto de possibilidades. Concebe-se que a janela está fechada por ameaças, ou, no mínimo, significantemente reduzida. O presente deixou de ser somente um espaço temporal de transição e se torna amplo, repleto de simultaneidades, no qual o indivíduo sente que o seu papel de transformação perde força. O passado não fica mais para trás. Ele é concebido como algo que não passa e que constantemente inunda o presente.
Portanto, o indivíduo contemporâneo, não só o brasileiro, carrega nos ombros o peso da projeção de um futuro distópico. O que será de fato ninguém pode dizer que sabe. Vive, assim, em total dúvida sobre o amanhã. As séries, produção cultural com maior poder disseminação na atualidade, representam bem essa distopia: são cada vez mais sombrias, quando não apocalípticas, como se vê em “
The Walking Dead (AMC)”.
Arrisco dizer que essa distopia tem origem na sensação de se estar de mãos atadas – que, aparentemente, permeia em demasia a sociedade atual. Há muitos outros fatores que levam ao fatalismo. A crescente ideia de que o nosso poder de ação no mundo é ínfimo pode ser um deles. Ou seja, frequentemente o sujeito teme o que virá e no fundo acha que pouco, ou até mesmo nada, pode ser feito para que seja diferente. “
O inverno está chegando”, frase da série de “
Game of Trones (HBO)”, expressa bem isso.
Uma sociedade despida da crença do seu próprio poder de transformação é uma sociedade melancólica. Para
Freud (1917/2006), a melancolia seria um distúrbio na autoestima relacionado a perda de um objeto, sendo que tanto “
perda” quanto “
objeto” devem ser compreendidos em um sentido amplo. Diferentemente de um estado de luto, quando ocorre o processo normal de retirada da libido do objeto perdido e a seguir seu deslocamento para outro objeto, os melancólicos identificam-se com o objeto que tinha sido perdido e desloca para si próprio críticas que deveriam ser dirigidas ao objeto. Ao mesmo tempo que ocorre essa depreciação do eu, há um processo de supervalorização e idealização do objeto perdido.
Esse estado de melancolia que aparentemente percorre a sociedade é preocupante, porque os indivíduos, mergulhados nesse distúrbio, não se veem na capacidade de transformar a realidade. Depreciam o eu não se percebendo como sujeitos históricos capazes de transformar e, concomitantemente, agigantam o objeto a ser transformado. A incapacidade de ser afetado de outras maneiras, consequentemente, impede-o de vislumbrar um futuro que não seja
Black Mirror (Netflix).
Perceba que o modo como o futuro é projetado incide no que acontecerá no presente, porque o que o sujeito sente por tudo o que viveu condiciona o que ele fará no agora, assim como a forma como ele se relaciona com tudo o que ainda não viveu. Diante da aceleração dos acontecimentos e da paralisia originada numa ideia prévia de dúvida em relação ao amanhã, que é entendido como imutável, não raro a sensação que paira no ar é de se estar num trem-bala em alta velocidade vendo a vida passar pela janela numa sucessão de cores e formas, sem saber para aonde se está indo e sem se sentir capaz (melancolia) de mudar a própria situação. Ou seja, o indivíduo na atualidade depara-se com um mundo inteiro por fazer e acredita que, depois de muito trabalho, ainda muito estará por fazer. Imobilizado pela idealização do objeto a ser transformado, restringe-se a autodepreciação.
No entanto, o amanhã não pode ser apenas inverno. Numa sociedade melancólica de corações partidos e ilusões perdidas, precisamos reaprender a imaginar um futuro onde se possa viver e onde se queira viver. A pergunta que paira no ar é: isso ainda é uma possibilidade?
*João Miranda é acadêmico de História na Universidade Estadual de Ponta Grossa, foi colunista do Jornal da Manhã e colaborou para Pragmatismo Político.
Referências
Freud, S. (2006). Luto e melancolia. In: S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente. (L. Hans, trad., Vol. II: 1995-1920, pp. 99-122). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1917)
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