Em recente entrevista ao Site Brasil 247, o correspondente internacional Pepe Escobar diz algo sutil da cena geopolítica que passou batido até para os analistas mais 'qualificados' aqui no Brasil. Quando Obama chamou Lula de "O Cara" em 2009, havia muito mais complexidade embutida na frase do que a mera tietagem do homem mais poderoso do mundo.
Escobar transita em todo o circuito do poder e da diplomacia internacionais. Ele ora está em Londres, ora em Paris, ora em Nova York, ora em Dubai, ora em Jacarta, ora em Bagdá, ora em Istambul, ora em Moscou, ora em Pequim.
Ele dialoga com ex-agentes da Cia, da NSA, do serviço de inteligência russo (tem imensa proximidade com os russos), das agências árabes, europeias, enfim, é um dos jornalistas mais bem informados da cena geopolítica, disparado.
Escobar sabia o que estava em jogo quando Obama proferiu a frase histórica face to face com Lula. Ali, Obama de fato, queria "ser" o Lula. O presidente americano não compreendia como um presidente sul-americano gozava de tanto respeito nos mais cascudos meios diplomáticos e geopolíticos.
O próprio Obama, do alto de sua popularidade internacional e de posse de uma assessoria para política externa ultra qualificada e poderosa, não conseguia sequer elaborar uma tese a respeito da popularidade global assombrosa de Lula (que, segundo Escobar, perdura até hoje).
Lula não era só popular na Europa e na África. Lula ultrapassava todas as fronteiras da guerra da contrainformação internacional. Era profundamente respeitado no Iraque, na Líbia, na Síria, em Pequim, na Indonésia, em Hong Kong, enfim, não havia núcleo de poder institucional ou não que tivesse uma crítica a Lula.
Isso impressionou Obama, o homem mais bem informado do mundo. Lula, de fato, foi - e é - uma personalidade inédita para a cena global e para a política internacional. Além do carisma e da biografia, Lula foi espetacularmente inteligente e soube demarcar zonas de influência com muita habilidade, em parceria com seu chanceler, Celso Amorim.
É por isso que o acordo com o Irã em 2010 foi realizado com aquela naturalidade e sobranceria. Obama não conseguia sequer dialogar com Ahmadinejad. O relato que temos, segundo o próprio Lula - ninguém conseguiria relatar isso com tamanho desprendimento e precisão - é quase folclórico. Lula tomou o elevador da ONU, em Nova York, e lascou a Ahmadinejad: "vem cá, baixinho: eu não saio daqui sem a sua assinatura".
Qual chefe de Estado consegue dispor de uma linguagem dessas diante de um iraniano com fama de mau? A despeito da inteligência de Amorim e do próprio Lula, essa linguagem direta e "despachada" conquistou o mundo. Lula poderia fazer o que quisesse no cenário internacional e quem diz isso é o próprio Pepe Escobar.
Escobar relata que era consenso entre diplomatas, informantes e toda a sorte de agentes políticos internacionais que o Brasil já era um dos maiores "players" internacionais. Dispunha de imensa persuasão e nadava em popularidade insuspeita nos circuitos mais impenetráveis do mundo político e comercial. A coisa era séria.
Não admira. O Brasil fez o diretor da OMC, cargo importantíssimo e altamente estratégico para pretensões econômicas mais ambiciosas. O Brasil fez o diretor da FAO. O Brasil construiu o acordo com o Irã. O Brasil conquistou os dois maiores eventos do mundo, Copa e Olimpíadas (Obama saiu de Copenhague com um sorriso amarelo e mãos abanando), de maneira seguida, algo só realizado pelos poderosos EUA.
Tudo isso narrado por Pepe Escobar, com sua dicção vertiginosa, prolixa e repleta de mini digressões saborosas, chega a provocar um fio de lágrima em quem celebrava o protagonismo internacional que o Brasil exercia há alguns anos. Porque, tanto Escobar como nós, sabemos que essa janela histórica de liderança soft power internacional, que traria - e trouxe - um sem-número de dividendos para toda a população brasileira, foi por água abaixo e, talvez, jamais seja sequer imaginada de novo.
O Brasil, segundo Pepe, encaminhava-se para a liderança mundial. Diz ele que, já em 2010, não se imaginava mais nenhum tipo de negociação multilateral sem a presença do Brasil.
Ouvia isso diretamente dos jornalistas internacionais e dos agentes transversais ao tecido político, como diplomatas, empresários e assessores para segurança internacional e outras ações menos "republicanas" - e, por isso mesmo, investidos de profunda "verdade" pragmática. Ou: a rede submersa internacional que dá as cartas no gerenciamento dos conflitos inter-nações sabia do papel que Lula e o Brasil estavam começando a exercer em todo o tabuleiro político internacional.
Escobar complementa que o jornalismo brasileiro sempre desprezou a análise de conjuntura internacional. Diz com todas as letras: são péssimos. Nem sabem aonde está a notícia. Vivem de replicar as informações das agências internacionais de maneira oca e passiva - e, com isso, reproduzem o discurso americanófilo de joelhos.
É quase impossível - segundo cifras deixadas por Escobar em sua prolixa narrativa - para um brasileiro acompanhar o noticiário internacional. Não há enunciados produzidos em território nacional. Não há leitura e contextualização. Não há interpretação. Essa, talvez, seja a nossa mais impressionante marca internacional de viralatismo aplicado: o jornalismo brasileiro é periférico, subserviente e de péssima qualidade.
Curiosamente, toda essa expertise de Escobar nos cai como uma luva neste presente momento. Porque este cidadão que goza de imenso prestígio internacional chamado Lula está na iminência de sofrer a maior violência de sua história. Não nos esqueçamos, no entanto, que quem está fora do Brasil e fora dos domínios de nossa imprensa desconhece a campanha de ódio enfrentada por Lula.
Ou seja: desconhece que Lula seja taxado por parte de nossa elite como alguém que praticou corrupção. Isso significa que a reputação internacional de Lula continua intacta, haja vista a sua indicação para o Prêmio Nobel da Paz pelo Nobel argentino Adolfo Pérez Esquivel.
Nós estamos na iminência de um novo processo de ruptura institucional e social cujo o desfecho nem o mais talentoso dos oráculos pode se dar ao luxo de prognosticar. O Brasil golpista ainda não testou internacionalmente a recepção às violências domésticas cometidas a Lula. Poderemos ver isso nos próximos dias.
A se crer no conhecimento das percepções difusas internacionais que Escobar pontua - e a qualidade técnica de suas impressões e vivências é indiscutível -, teremos um momento turbulento do ponto de vista internacional para o Brasil. Não é só o caos interno que aponta no horizonte: é a escandalização internacional sobre a precariedade institucional de uma ex-potência.
Talvez, o episódio hediondo da execução de uma vereadora fluminense tenha acendido esse alerta. Marielle ganhou manchetes e apoios internacionais como nunca antes na história deste país. Imagine o que ocorreria se a violência judicial a Lula prosseguisse e se aprofundasse.
A vitória de ontem no STF, singela, parcial, inesperada, enseja um certo cuidado aos que dão como certa a prisão de Lula. A força internacional exercida por ele, relatada por um dos mais respeitados correspondentes internacionais, não deixa dúvidas: Lula não é apenas uma questão interna. Ele transcende essa mesquinharia doméstica destituída de soberania e institucionalidade.
É cedo demais para se comemorar, mas ao que parece, as pressões naturais da opinião pública recomeçaram a agir depois de um longo período de hibernação. Resta observar essa reorganização das forças políticas e dos poderes para relinhar o sonho pela volta da democracia. Às vezes, nem tudo é tão catastrófico como parece. Às vezes, o lado de lá vacila por excesso de confiança. Que não incorramos no erro de desprezar mais este interessante momento derivado de delicada vitória.
Que fique bem claro: essa vitória da defesa de Lula tem um efeito simbólico devastador para o golpe. Ela vai melindrar partes interessadas, vai minar autoconfianças e vai confundir o andamento narrativo cuidadosamente ensaiado por Globo e asseclas. A hora é boa para investidas. A hora é boa para mobilizações. A hora é boa para cerrar os punhos. BR 247