Na volta do trabalho exaustivo de gari, Maria do Rosário comprava uma borracha. Em casa, ela apagava todas as respostas escritas pelo antigo dono dos livros doados para a filha dela, Angélica Oton. Assim, a jovem de 20 anos, construía novas repostas e estudava para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Com a nota da prova, ela foi aprovada pelo Sisu 2024 para o curso de medicina, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
“Fiquei muito feliz quando eu vi o meu nome. Deu uma sensação de alívio e de dever cumprido. Corri e abracei meu pai. Corri e abracei minha mãe. Os vizinhos chegando. Todo mundo estava torcendo por isso, e a gente ficou muito feliz”, lembrou.
Mas antes de realizar esse sonho coletivo, um longo caminho precisou ser percorrido pela jovem sertaneja, que mora em Boa Ventura. Ela foi bolsista em uma escola localizada na cidade vizinha, Itaporanga. Acordava antes do sol nascer, ainda na madrugada. Para que ela pudesse assistir às aulas, os pais pagavam uma taxa de cerca de R$ 150 com o transporte em um ônibus. Isso já pesava no orçamento da família.
Quando terminou o ensino médio, a aprovação não veio na primeira tentativa. Nem na segunda. Na terceira, todo o esforço de Angélica e da família dela foram recompensados. Só que até isso acontecer, foram dias e mais dias de estudos. Em alguns deles, ela chegou a passar até 11 horas na frente dos livros, apostilas e provas.
“Todos os dias não eram iguais. Estudava até 11 horas, mas variava. Teve dia que de tão cansada estudei 40 minutos. Mas no meu plano de estudos, devia fechar as 10 horas por dia”, explicou.
Como os cursinhos eram caros, a estudante não conseguiu contratar nenhum. Os livros e apostilas recebidos por meio de doação se tornaram a principal estratégia de estudos de Angélica, que se identifica com dedicação à teoria.
“Minha mãe ia apagando as repostas e eu ia estudando”, recordou.
As aulas eram acompanhadas pelo Youtube. Além da teoria, ainda houve espaço para a prática com a resolução de questões, produção de resumos e revisões semanais. A agora “fera” em medicina também dividiu a mensalidade de uma assinatura de plataforma de correção de redações com uma amiga.
Encher as paredes de pedaços de papel colorido também teve o seu valor. Com o que estudou a distância de um piscar de olhos, a jovem revisava de forma mais rápida o que era mais pontual. A ótima memória fotográfica ajudou na hora da prova. Tudo isso fez com que ela alcançasse uma média de 877,55 no Sisu, na modalidade ampla concorrência com bônus regional.
“Nossa casa praticamente não tem móveis porque minha mãe tava investindo na minha educação”
Muitas coisas motivaram Angélica na escolha da profissão que deve seguir pelo resto da vida.
“Sempre gostei muito de servir as pessoas, de cuidar. Eu quero ajudar pessoas como fui ajudada de alguma forma”, destacou.
Mas um incentivo foi o maior de todos: proporcionar uma vida melhor para os pais, que ela considera essenciais na conquista da vaga na universidade.
“Uma das minhas maiores motivações sempre foi ver eles ali trabalhando, se esforçando. Sempre arrumavam outros empregos pra completar a renda da família. Muita gente falava ‘por que não compra isso? Por que não compra aquilo?’. Porque nossa casa casa praticamente não tem móveis porque minha mãe estava investindo na minha educação. Eles [os pais] foram essenciais. Sem eles eu não teria como conseguir”, reforçou.
Enquanto a mãe de Angélica deixava os livros prontos para ela estudar, o pai pedia autorização para imprimir provas antigas do Enem e simulados no segundo emprego, em uma secretaria de escola.
“Meu pai sempre disse que o sonho dele era ter uma fazenda. E desde pequena eu digo que vou arrumar um emprego pra realizar. Sempre pensei em tirar minha mãe do trabalho dela, que é muito cansativo. Não tem como retribuir a um pai e uma mãe, mas ajudar eles a mudar de vida. E a minha família como um todo. Dar qualidade de vida para eles, uma casa melhor para morar”, sonhou.
(Fonte: G1)
Postado por Madalena França
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