Antes do golpe de 2016, era costume ouvir que decisão judicial não se discute; se cumpre. A verdade inquestionável funcionava como uma deferência as pessoas capazes de decidir o destino de outras com base em procedimentos legais estabelecidos, provas, depoimentos, amplo direito de defesa e respeito aos direitos humanos. O processo tinha suas distorções, mas nenhuma delas em condições de afetar o principal patrimônio do judiciário – sua credibilidade.
Mas aí a interrupção do mandato da presidente Dilma Rousseff, sem crime de responsabilidade, deu asas a um grupo de juízes e procuradores mais preocupados em defender seus modelos filosóficos e políticos do que se ater aos autos. Com um comportamento baseado no combate a opiniões contrárias, uma parte do poder judiciário foi jogada no abismo, junto com a democracia, como observou o economista Mark Weisbrot, na semana passada, em artigo para o New York Times.
Nesta quarta-feira, Lula foi condenado por três juízes do Tribunal Regional Federal da quarta Região pela posse de imóvel que nunca lhe pertenceu – o já famoso tríplex do Guarujá. A costura da história, no entanto, não daria um roteiro de cinema. Não há um nó na história nem como ligar à Petrobras, mas mesmo assim optou-se pelo enredo possível e disso nasceu a sentença. Como os três juízes gostam de unanimidades, votaram todos para manter a condenação imposta a Lula pelo juiz Sergio Moro.
Mesmo antes do veredicto, o enredo do processo já causava espanto em especialistas nacionais e internacionais. Em uma democracia, o resultado esperado seria a absolvição ou talvez o caso nem merecesse ir a julgamento. Juristas e filósofos de todo o mundo - alguns especializados em lógica – viram no processo contra Lula uma fileira de incoerência que começa pela falta de um dos pilares do Direito – a prova. Não há sequer crime. Não há nada além do desejo político-eleitoral de tirar Lula das eleições de 2018 e de cumprir os passos do golpe, com a implantação de medidas contra o povo. Lula é acusado de ser dono de imóvel que nunca lhe pertenceu – o já famoso tríplex do Guarujá – e por causa dele foi condenado a uma pena de 12 anos e um mês de prisão, três a mais do que pedido de Moro.
Foi uma farsa tão desavergonhada que até adversários do PT, como o jornalista Reinaldo Azevedo, da Folha de S. Paulo, comentaram o assunto de forma crítica. “Curiosamente, ao percorrer caminhos contrários às normas na condução da investigação e do julgamento — refiro-me ao conjunto da obra, não apenas aos casos relacionados ao ex-presidente —, as forças associadas à Lava Jato acabaram criando uma armadilha contra a própria operação”, observou Azevedo.
Para a ex-ministra da justiça da Alemanha Herta Däubler-Gmelin, um crescente número de indícios reforça o temor de que uma parcela considerável do Judiciário brasileiro se compreende como um braço da elite nacional do poder e do dinheiro. “Assim, sacrifica, mediante invocação abusiva da independência do juiz, os princípios do Estado de Direito, ancorados também na Constituição Federal”, conforme escreveu em sites brasileiros.
A sentença exótica do juiz de Curitiba foi inclusive tema de um livro - Falácias de Moro - Análise Lógica da Sentença Condenatória de Luiz Inácio Lula da Silva', escrito pelo filósofo Euclides Mance. “São muito muitas falhas lógicas e a existência delas por si só já invalidam as conclusões as quais juiz chega à sentença. E, se do ponto de vista lógico, as conclusões não têm validade, elas não servem para fundamentar a sentença condenatória do ex-presidente. Portanto, a sentença como tal, não tem também validade jurídica”, afirmou o autor.
Segundo ele, uma falha da sentença é a inversão do ônus da prova. “Não há na sentença prova alguma de que o tríplex da OAS no Guarujá tenha sido repassado para Lula; pelo contrário, constam depoimentos de que isso nunca ocorreu”, diz ele. Mark Weisbrot foi direto em seu artigo no New York Times. Ele não considerou o julgamento imparcial e disse ainda que as provas contra Lula estão abaixo do padrão em que seriam levadas a sério, por exemplo, no sistema judiciário dos Estados Unidos. “Não há provas de que Lula ou sua mulher tenham recebido título de propriedade ou alugaram ou até mesmo viveram no apartamento que seria fruto de corrupção, nem mesmo de que o tenham aceitado como presente” escreveu.
Não resta dúvida de que o resultado do julgamento de Lula impõe uma reflexão sobre o judiciário e seu papel em um regime democrático. Há uma intensa troca de papéis com outros poderes e tal entrelaçamento deixa antever, em muitas situações, que alguns segmentos estão envolvidos em um processo que começou com a deposição de Dilma e teve seu último lance no tribunal de Porto Alegre.
A democracia só existirá quando seu judiciário recuperar o respeito e a competência para julgar apenas a partir do processo, deixando de lado preferências políticas e antipatias pessoais. Caso contrário parecerá à eterna reprodução de cenas desesperançadas que o historiador Abdala Farah Netto expôs em testemunho nas redes sociais logo após a condenação de Lula: “Acompanhei todo o processo do golpe contra Dilma... Todo! Qualquer medida, contestação ou argumento da defesa era indeferido! Em todas as instâncias! Lembro-me do ex-ministro José Eduardo Cardozo dando aula no STF... Em vão. Tudo se repete no justiçamento contra o Lula. Tudo. O golpe segue seu roteiro”. Artigo de Lula Falcão