De retrocesso em retrocesso, o Brasil vai confirmando a máxima de Millor de que possui um enorme passado pela frente. O implacável inspetor Javert questiona nossa máquina de moer miseráveis
“Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis” (Victor Hugo, Prefácio de Os Miseráveis).
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), em 2016, a população brasileira que se identificava como preta ou parda representava 54% do total. [2]
Embora o percentual tenha dobrado em dez anos, após a implementação de políticas afirmativas, em 2015 apenas 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos frequentavam universidades – número que equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade [3]. Entre o 1% mais rico da população, os negros também são minoria – 17% [4].
Por outro lado, a população negra assume o protagonismo quando o assunto é população carcerária: 64% dos presos no sistema penitenciário nacional são negros. Em 2016, Relatório Sobre o Perfil dos Réus Atendidos nas Audiências de Custódia concluiu que a possibilidade de um branco preso em flagrante ser solto ao ser apresentado ao Juiz é 32% maior que a de um negro ou de um pardo na mesma situação [5].
“Javert se afastara lentamente da rua l”Homme-Armé.Caminhava de cabeça baixa pela primeira vez em sua vida, e, igualmente pela primeira vez em sua vida, com as mãos atrás das costas.Até aquele dia, Javert apenas imitara Napoleão na atitude que exprime resolução, os braços cruzados sobre o peito; a que exprime incerteza, as mãos atrás das costas, era-lhe desconhecida. Agora, uma mudança fora operada: toda a sua pessoa, lenta e sombria, estava impregnada de ansiedade”.
Em setembro de 2015, ao julgar a ADPF 347, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a violação de direitos fundamentais da população carcerária, declarando haver no país um “estado de coisas inconstitucional” e irradiando a esperança de dias melhores.
Pouco mais de um ano depois, em janeiro de 2017, apenas nas duas primeiras semanas do ano, 133 pessoas perderam as vidas dentro do sistema prisional [6] – em 2016, foram quase 400 mortes violentas registradas nos presídios [7]. Em outubro de 2017, homem preso por embriaguez ao volante morre em município do Maranhão após passar o dia e a noite preso em uma cela ao ar livre em uma delegacia da cidade [8].
“Uma novidade, uma revolução, uma catástrofe acabava de se operar em seu interior; por isso era necessário examinar-se.Javert sofria terrivelmente.(…)Via diante de si dois caminhos, ambos retos, mas via dois; e isso o apavorava, a ele, que nunca em sua vida conhecera senão uma única linha reta. E, angústia pungente, esses dois caminhos eram opostos. Qualquer uma dessas linhas retas excluía a outra. Qual delas era a verdadeira?”
Abril de 2005: após 11 meses presa pela tentativa de furto de um xampu e de um condicionador, empregada doméstica é torturada no interior de presídio e perde a visão do olho direito [9]. Fevereiro de 2008: catador de sucata passa 7 meses preso sob a acusação de tentar furtar uma garrafa de pinga avaliada em R$ 1,50 [10]. Outubro de 2015: homem é condenado a mais de um ano de prisão pelo furto de dois pacotes de bolacha [11].
Março de 2018: Superior Tribunal de Justiça altera sua jurisprudência para passar a aplicar o princípio da insignificância nos crimes contra a ordem tributária e de descaminho quando o débito tributário não ultrapassar R$ 20.000,00 – até então, o STJ considerava insignificantes débitos tributários de até R$ 10.000,00 [12].
“Que fazer agora? Entregar Jean Valjean era errado; deixar Jean Valjean livre era errado. No primeiro caso, o homem da autoridade descia abaixo do homem preso; no segundo, um miserável ia mais alto que a lei e metia-lhe o pé por cima. Nos dois casos, desonra para ele, Javert. Qualquer que fosse a resolução que tomasse, haveria uma queda. O destino tem certas extremidades que vêm a pique sobre o impossível e para além das quais a vida nada mais é que um precipício. Javert achava-se em uma dessas extremidades.Uma de suas ansiedades era ser obrigado a pensar. A própria violência de todas aquelas emoções contraditórias obrigava-o a isso. Pensar, coisa inusitada e singularmente dolorosa para ele.No pensamento há sempre uma certa quantidade de rebelião íntima; ele se irritava por ter isso em si”.
Novembro de 2017: no mesmo dia em que a “reforma trabalhista” entrou em vigor, Juiz condena trabalhador a pagar R$ 8.500,00 de custas processuais [13]. Menos de quatro meses depois, Juíza do Mato Grosso condena trabalhador a pagar mais de R$ 700.000,00 em honorários sucumbenciais a uma empresa de transportes [14].
“Sua suprema angústia era o desaparecimento da certeza. Sentia-se desenraizado. O código já não era mais que uma coisa inútil em suas mãos. Tinha de se haver com escrúpulos de natureza desconhecida. Operava-se nele uma revelação sentimental, inteiramente distinta da afirmativa legal, sua única norma até então. Permanecer na antiga honestidade já não era mais o bastante. Surgia toda uma ordem de fatos inesperados que o subjugava. Surgia em sua alma um mundo inteiramente novo; o benefício aceito e retribuído, a dedicação, a misericórdia, a indulgência, as violências feitas por piedade à austeridade, a acepção de pessoas, não mais a condenação definitiva, não mais as penas, a possibilidade de uma lágrima nos olhos da lei, certa justiça segundo Deus indo em sentido inverso à justiça segundo os homens. Ele percebia nas trevas o assustador despontar de um sol moral desconhecido, que o horrorizava e deslumbrava. Um mocho forçado a ter olhares de águia”.
Novembro de 2013: Polícia Federal apreende cerca de 450 quilos de cocaína em helicóptero de empresa pertencente a deputado mineiro. Em 2016, sem qualquer punição a nenhum dos envolvidos, o deputado (cujo pai senador participou da comissão que avaliou o processo de impeachment) é nomeado pelo governo do então presidente interino Michel Temer para o cargo de Secretário Nacional de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor [15] – em 2018, assumiu o cargo de diretor de Desenvolvimento e Projetos da CBF.
Julho de 2017: detido com 130 quilos de maconha, centenas de munições de fuzil e uma pistola nove milímetros, filho de Desembargadora consegue liberdade após pouco mais de três meses de prisão [16]. Em novembro, é preso novamente, por suspeita de ligação com o tráfico de drogas.
Dezembro de 2017: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirma condenação do ex-catador de latas Rafael Braga à pena de 11 anos de reclusão, acusado de tráfico de drogas e associação para o tráfico ao ser preso portando 9,3 gramas de cocaína e 0,6 gramas de maconha no Complexo de Favelas da Penha [17].
“Dizia a si mesmo que então era verdade, que havia exceções, que a autoridade podia ser confundida, que a regra podia ser insuficiente perante um fato, que nem tudo se enquadrava ao texto do código, que era preciso obedecer ao imprevisto, que a virtude de um criminoso podia preparar uma armadilha à virtude de um funcionário, que o monstruoso podia ser divino, que o destino tinha dessas ciladas, e pensava com desespero que ele mesmo não estivera ao abrigo de uma surpresa.(…)Não se compreendia mais. Não estava mais seguro de ser ele mesmo. As próprias razões de seu ato lhe escapavam e isso causava-lhe apenas vertigem. Vivera, até esse momento, dessa fé cega que produz a probidade tenebrosa. Essa fé o abandonava, essa probidade lhe faltava. Tudo em que havia acreditado se dissipava. Verdades que ele não desejava o obcecavam inexoravelmente. A partir de agora era preciso ser um outro homem. Sofria as estranhas dores de uma consciência bruscamente operada de catarata. Via o que lhe causava repugnância ver. Sentia-se vazio, inútil, deslocado de sua vida passada, destituído, dissolvido. A autoridade morrera nele. Já não tinha razão de ser”.
Setembro de 2014: Ministro do Supremo Tribunal Federal estende por meio de liminar o pagamento de auxílio-moradia, no valor mensal de R$ 4.377,73, a toda a magistratura [18]. Quarenta e quatro meses depois, como a ação que trata do tema ainda não foi julgada pelo STF, cada membro do Poder Judiciário ou do Ministério Público que requereu o auxílio já recebeu R$ 192.620,12, em valores isentos de impostos e não corrigidos monetariamente.
Abril de 2016: Defensoria Pública da União ingressa com ação pleiteando auxílio-moradia no valor de R$ 750,00 mensais às pessoas que formariam a população de rua de todo o país [19] – nos cálculos apresentados pela DPU, o custo financeiro do pedido seria similar ao crédito extraordinário liberado para o pagamento de auxílio-moradia aos membros dos poderes da República no ano de 2016. A ação foi extinta sem resolução de mérito.
Maio de 2018: desabamento de edifício ocupado em São Paulo, com número ainda indefinido de vítimas, escancara o apartheid habitacional brasileiro.
“Ser obrigado a confessar-se o seguinte: que a infalibilidade não é infalível, que pode existir erro no dogma, que um código não prevê tudo, que a sociedade não é perfeita, que a autoridade se complica por vacilações, que um abalo no imutável é possível, que os juízes são homens, que a lei pode enganar-se, que os tribunais podem errar! Que se pode ver uma fenda na imensa vidraça azul do firmamento!(…)Assim – no crescimento da angústia e na ilusão de óptica da consternação, tudo o que poderia ter restringido e corrigido sua impressão se apagava, e a sociedade, e o gênero humano, e o universo a partir daquele momento resumiam-se, a seus olhos, a um esboço simples e terrível -, assim a penalidade, a coisa julgada, a força devida à legislação, as sentenças das cortes soberanas, a magistratura, o governo, a prevenção e a repressão, a sabedoria oficial, a infalibilidade legal, o princípio da autoridade, todos os dogmas em que se baseiam a segurança política e civil, a soberania, a justiça, a lógica que deriva do código, o absoluto social, a verdade pública, tudo isso não passava de destroços, amontoados, caos; o próprio Javert, o vigia da ordem, a incorruptibilidade a serviço da polícia, a providência-mastim da sociedade, vencido e jogado ao chão; e sobre toda essa ruína um homem de pé, boné verde na cabeça e auréola na fronte; eis a que ponto seu transtorno chegara; eis a visão assustadora que tinha na alma”.
Caso hipotético (mas nem tanto) [20], ocorrido em uma cidade brasileira qualquer:
Homem é preso em flagrante ao tentar furtar botijão de gás em uma casa pertencente a conhecido empresário da cidade. Como já tinha praticado outros pequenos furtos e o crime foi cometido mediante a escalada de um muro, é condenado a quase quatro anos de reclusão, em regime inicial fechado.
No mesmo mês, o empresário (dono do botijão de gás) é indiciado por crime tributário ao sonegar milhões de reais de ICMS. Por ter parcelado o débito em sessenta prestações, o inquérito é suspenso sem ao menos o empresário ter sido denunciado. Caso cumpra o parcelamento e salde a dívida, sua punibilidade será extinta, não sendo sequer processado pelos fatos. Se descumprir o parcelamento e for condenado criminalmente, ainda terá a opção de pagar o débito tributário posteriormente, caso em que também terá a punibilidade imediatamente extinta, não precisando cumprir a pena imposta.
“Até então, tudo o que tivera acima de si fora, a seu modo de ver, uma superfície clara, simples, límpida; ali nada havia de ignorado, nem de obscuro; nada que não fosse definido, coordenado, ligado, preciso, exato, circunscrito, limitado, fechado; totalmente previsto; a autoridade era uma coisa plana; nenhuma queda, nenhuma vertigem diante dela. Javert nunca vira o desconhecido senão embaixo. O irregular, o inesperado, a abertura desordenada do caos, a possibilidade de uma queda em um precipício, todos esses eram fatos das regiões inferiores, dos rebeldes, dos maus, dos miseráveis. Agora, Javert caía de costas, e estava bruscamente espantado com essa aparição inédita: um abismo nas alturas.(…)Como! A falha da couraça da sociedade podia ser encontrada por um miserável magnânimo! Como! Um honesto servidor da lei podia ver-se, de repente, preso entre dois crimes, o crime de deixar escapar um homem e o crime de prendê-lo! Nem tudo era certo nas instruções dadas pelo Estado ao funcionário! Poderiam existir impasses no dever! Que, então! Tudo isso era real! Era verdade que um antigo bandido, curvado sob as condenações, pudesse erguer-se e acabar tendo razão? Isso era possível? Então, havia casos em que a lei deveria retirar-se diante do crime transfigurado balbuciando desculpas?”
Início de 2016: diversos membros do Poder Judiciário participam de manifestações em favor do impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, incluindo Juiz que ficou nacionalmente conhecido por suspender a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como Ministro da Casa Civil; até o momento, nenhum procedimento foi instaurado para apuração de suas condutas. Outubro de 2017: conselheiros do CNJ abrem procedimento administrativo para apurar eventual falta disciplinar cometida por quatro Juízes que se manifestaram em protesto contrário ao impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef. O relator do caso, corregedor e Ministro do Superior Tribunal de Justiça, ofereceu em junho de 2016 jantar em sua residência do qual participaram o então Presidente em exercício Michel Temer e os senadores Aécio Neves e José Serra [21].
Fevereiro de 2017: Tribunal de Justiça de São Paulo aplica pena de censura a Juíza que proferiu decisões libertando réus que estavam presos preventivamente por mais tempo do que a pena fixada em suas sentenças [22]. Até o momento, não há notícias de procedimentos instaurados contra os responsáveis pela não libertação de réus presos por tempo excessivo.
Abril de 2018: Conselho Nacional do Ministério Público instaura procedimento para apurar a conduta de ex-Procurador Geral de Justiça do Paraná, conhecido por sua atuação em prol da dignidade da pessoa humana e de grupos historicamente marginalizados, por ter finalizado seu discurso na IV Conferência Estadual De Promoção da Igualdade Racial do Paraná com a expressão “Fora Temer” [23].
Aguarda-se quem será o próximo jurista com posições consideradas progressistas a ser investigado, nesse incipiente macartismo à brasileira que tende a se aprofundar.
“Javert permaneceu alguns minutos imóvel, olhando para aquela abertura de trevas, contemplando o invisível com uma fixidez que se assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e colocou-o em cima do muro do cais. Um momento depois, um vulto alto e negro, que, de longe, algum passante tardio tomaria por um fantasma, apareceu de pé em cima do parapeito, curvou-se em direção ao Sena, ergueu-se e caiu direto nas trevas; houve um movimento rápido e surdo das águas; e somente a escuridão presenciou o segredo das convulsões daquela forma obscura que desapareceu sob a água”.
Epílogo
Por mais que a quantidade de brasileiros encarcerados continue crescendo sistematicamente, atingindo em junho de 2016 o número de 726 mil presos (tomando da Rússia o posto de terceira maior população carcerária do mundo) [24], nossos implacáveis agentes da lei não têm com o que se preocupar: as medidas adotadas pela Casa Grande desde que a camarilha sem votos ascendeu ao poder (congelamento de gastos sociais, precarização das relações de trabalho, flexibilização de direitos) estão atingindo seus objetivos, com a consequente (e comemorada) multiplicação de miseráveis.
Perdido em suas próprias contradições, o sistema de justiça tupiniquim observa omisso (quando não aplaude ou mesmo patrocina) o rápido desmonte dos parcos avanços civilizatórios conquistados pós Constituição Cidadã.
No mais, de retrocesso em retrocesso, o Brasil vai confirmando a máxima de Millor de que possui um enorme passado pela frente.
Pragmatismo Político
Sem comentários:
Enviar um comentário