Redação PragmatismoEditor(a)
Constitucionalista analisa como o STF encontrou seu caso Dred Scott, um julgamento que a Suprema Corte norte-americana enfrentou em meados do século 19, e que até hoje envergonha a casa
Um dos grandes constitucionalistas brasileiros, dotado de ampla liberdade intelectual, o jurista Lênio Streck analisa o julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo Tribunal Federal. Considera que o STF encontrou seu caso Dred Scott, um julgamento que a Suprema Corte norte-americana enfrentou em meados do século 19, e que até hoje envergonha a casa.
Considera que a decisão marcou o primeiro dia do resto das nossas vidas, onde o desafio maior será juntar os cacos do direito.
A entrevista foi concedida na 5ª feira à noite, depois do anúncio da ordem de prisão de Lula pelo juiz Sérgio Moro.
O que achou da decisão de Sérgio Moro de ordenar a prisão de Lula. Não havia recursos ainda?
Lênio Streck – Claro que sim. Mas não surpreende sabendo de onde vem. É de onde a Constituição não tem lugar. Um habeas corpus não concedido, eivado de contradições, tendo ainda embargos declaratórios, principalmente em uma questão que é bizarra. Você tem declaradamente 6 votos pela admissão da presunção da inocência conforme a Constituição, com duas variações, que são as posições dos Ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli para a questão do STJ. Mas a soma deles, com a Ministra Rosa Weber, dá 6. Ou seja, maioria.
Mas a Ministra acabou, de uma forma muito estranha e bizarra, dizendo que a posição dela, com relação à presunção, é positiva, mas, ao mesmo tempo, em relação ao habeas corpus ela estranhamente se coloca contra.
Ela diz que é pela questão da colegialidade. Isso é uma invenção da Casa dos Lordes, da Inglaterra, que já em 1966 sacou esse negócio. Se seguir à risca, nunca mudará as leis. O próprio Ministro Ricardo Lewandowski disse isso. Se seguir à risca a tese da Ministra, todo mundo vai continuar tendo a mesma posição. Não tem nenhum sentido.
Os Ministros, na sua grande maioria, disseram que estavam votando a tese, portanto estavam votando uma espécie de condição principal. O Ministro Barroso chegou a dizer que nem estava examinando o habeas corpus, porque estava votando só a tese. O Ministro Fux também disse. Então como aceitar o voto da Ministra Weber, que é a única que não vota na tese, mas vota contra o habeas corpus? Essa é a contradição sanável por embargos de declaração. Obviamente não transitou em julgado, não podia ser cumprido. Portanto, o pedido da prisão é inconstitucional.
Alguns advogados dizem que a defesa de Lula teria que ter impetrado paralelamente um HC no STJ. Poderiam?
Agora cabe, em face da violação do habeas corpus, que comporta embargos declaratórios e, portanto, não poderia cumprir imediatamente a decisão. Veja bem, o HC foi negado. Quando se nega o HC, ela não pode ser cumprida antes dos embargos declaratórios. Cabe HC e cabe pedido de liminar em relação às ADCs (Ação Direta de Constitucionalidade), que Kakay pediu. (As ADCs discutem a constitucionalidade da prisão após sentença em segunda instância).
Se Rosa Weber cumprir sua palavra, e ela disse a todo momento que é favorável à tese da OAB (que apresentou uma das ADCs), por que então o presidente e qualquer outro réu tem que ir para a prisão esperando uma decisão que já se sabe qual é?
Quais as consequências dessa decisão para o Estado de Direito?
Hoje é o primeiro dia do resto das nossas vidas nas quais a moral venceu o direito, o voluntarismo venceu a Constituição. Hoje começamos a contagem regressiva e levaremos muitos anos para juntar os cacos.
Nos Estados Unidos, em 1857, houve o famoso caso Dred Scott, no qual a Supremo Corte negou a Dred, que era escravo, a condição de entrar em juízo, porque não era pessoa. Até hoje a Suprema Corte se envergonha dessa decisão.
Estou pensando se este caso não é o nosso caso Dred Scott, pelas circunstâncias, pela questão bizarra. Se Ministros disseram que estavam votando a tese, por que é que é a Ministra Rosa Weber levantou essa coisa da colegialidade?
Garantias fundamentais a gente reconhece nos direitos do inimigo. Mas não resisto a um comentário, ironia da história. Dos 6 votos que hoje são favoráveis à salvação do presidente, 3 não foram votados por Dilma e Lula: Celso de Mello, o decano, Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Mello, que acabaram votando pela tese mais clara do mundo: onde está escrito xis, leia-se xis. Na clareza da lei, cessa a interpretação.
Em direito a coisa funciona assim: se tenho um dispositivo que diz xis, para eu não cumprir xis, eu tenho que dizer que essa norma não vale. O Supremo não diz que não vale e, na sua maioria, não cumpriu.
A gente vê abusos de toda ordem em procuradores, juízes, delegados. Qual vai ser o impacto dessa decisão na estrutura do Judiciário.
Como dizia Nelson Rodrigues, tudo isso que está acontecendo é fruto de muito trabalho e esforço. Durante anos, a comunidade jurídica não se importou com o direito. Os concursos públicos passaram a ser preenchidos por pessoas despreparadas, se formando em torno de cursinhos, em uma estrutura meramente técnica, muito mais em decisões dos tribunais, dando pouca bola para a doutrina. Aí se criou um círculo vicioso. Os cursinhos perguntam coisas que os tribunais decidem, e os tribunais perguntam nos concursos o que os cursinhos ensinam. Criamos uma geração que não valoriza a Constituição e a doutrina. Apenas segue uma coisa tardia no Brasil, que chamamos de realismo tardio. Você não confia mais no direito, na Constituição, mas apenas naquilo que os juízes dizem. Criamos um pequeno estamento, isso dito pelo próprio Ministro Gilmar Mendes, que faz com que o direito dependa de opiniões pessoais.
Vimos que, no comando de uma maioria, o Supremo pode reescrever a Constituição. Como enfrentar essa subversão?
É o problema do ativismo judicial, que venho denunciando há mais de 20 anos. Os próprios governos de esquerda se preocuparam pouco com o direito, deixando um pouco de lado essa discussão. Não se regulamentou a questão dos cursinhos de preparação, as faculdades de direito. Não se trabalhou o reforço de uma forte doutrina que tratasse a democracia brasileira, confiando na velha tese de que o direito é o que os tribunais querem que seja.
Hoje em dia, o direito brasileiro só falava em inglês, em common law, em colegialidade, como se um país de Terceiro Mundo, que precisa do Parlamento, fosse confiar mais na Inglaterra.
Nós estamos admitindo que o Supremo Tribunal reescreva a Constituição. E pior, colaboramos com isso, com as súmulas vinculantes. A soma disso tudo é uma tempestade perfeita.
Nessa balbúrdia, qual o futuro da democracia?
Vejo com muita preocupação. As democracias só sobrevivem quando direito e Constituição têm grau de autonomia. A grande conquista do Segundo pós-guerra para cá, foi mostrar que a democracia só se faz a partir do direito. A política tem que pagar pedágio para o direito.
Agora, se o direito paga pedágio para a política e para a moral, não é mais direito. Nos pós-guerra, o direito viu que fracassou. Qual a saída? Uma Constituição que fosse forte e fosse cumprida. Quando tem crise, como na Espanha e em Portugal, quase um ano sem governo, ninguém pensou em mudar a Constituição, porque sabem que a política paga pedágio para a Constituição.
A crise das constituições é tipicamente brasileira?
É mais acentuada em países como nosso, pelo dualismo metodológico. No século 19 se falava que as Constituições eram folhas de papel. Havia uma realidade social e podia se substituir as leis pela realidade social. Eram outros tempos. Hoje, em países como nosso, uma visão da realidade social para substituir a Constituição é uma temeridade. E aí viramos uma espécie de democracia plebiscitária e um judiciário plebiscitário. Quando um Ministro do Supremo diz “eu tenho que atender o anseio popular”, eu digo “alto lá! Como você afere isso? Tem uma pesquisa?”. E se tivesse a pesquisa, paradoxalmente o Judiciário não precisaria existir. Se o anseio popular vale mais que a Constituição, caio num paradoxo. Se pudesse comprovar esse tal de anseio popular, o Judiciário seria inútil.
Porque no Brasil há mudança de perfil tão grande de pessoas que mudam suas convicções depois que se tornam Ministros?
Eu diria que, nessas contas de débito e crédito, a comunidade jurídica está em insolvência epistêmica. Fracassamos, porque não conseguimos dizer uma coisa mínima: Constituição é remédio contra maioria; Supremo Tribunal não pode atender o reclamo das ruas; entre o clamor das ruas e da Constituição, vale o ronco da Constituição.
Nenhuma democracia no mundo se fortaleceu com questões sazonais. Primeiro, porque a opinião pública é opinião publicada. Depois, porque é sazonal. Vou dar um exemplo, vou ser cruel. Você lembra como o Ministro Celso de Mello no mensalão? O que ele disse sobre quadrilhas, bandoleiros? Todos disseram, olha que absurdo! Passado um tempo, o Ministro deu ontem um voto belo. Eu não sei daqui a dois meses, como ele atuará. Em uma democracia, o direito só se sustenta com certo grau de ortodoxia. Tem limites para as interpretações.
No meu programa Direito e Literatura, discutimos a superinterpretação. Pode discutir de Capitu traiu ou não Bentinho. A única coisa que não pode escrever é que Capitu era um travesti.
Uma pessoa carregando um porco nas costas, se colocar cinco pessoas, cada qual vai ter sua interpretação. Mas não pode dizer que é uma ovelha
Como se faz direito no Brasil? Como o personagem Humpty Dumpty, que diz à Alice, eu dou às palavras o sentido que eu quero. Diz para ela, porque você só faz aniversário uma vez por ano? E ela, porque é assim. E ele, você pode fazer 364 desaniversários e ganhar 364 presentes. Ela diz “não pode ser assim“. E ele: “pode, porque eu dou às palavras o sentido que eu quero“.
Com essa liberdade interpretativa, não há mais fatos, há apenas relatos. O que é a prova hoje no processo penal brasileiro, uma espécie de processo penal 3.0, com direção hidráulica? Prova tem que ser provada. E hoje, como diz o Dallagnol, eu tenho convicção. É nesse sentido a prova é só uma crença, uma convicção na cabeça de quem acusa.
O Direito abriu mão dos conceitos
Qual o impacto da desorganização mercado de opinião, com as redes sociais, mais o fundamentalismo religioso?
O exemplo é o Dallagnol, que mistura religião com Estado e com direito. Ele não sabe que Estado não se mete com religião, nem religião com Estado. Aquilo que Dallagnol e outros propõem, é a mesma coisa que se dizer que a sociedade exige que se faça isso. Ou seja, as opiniões morais valem mais que o direito. O custo da democracia é você, mesmo contra sua vontade, preservar o direito do inimigo. Senão, tem efeito bumerangue. Um querido amigo, jurista alemão, diz: Cuidado, os textos jurídicos podem revidar, podem bater de volta.
No Brasil, cada vez que se descumpre a Constituição, ele pode de volta e bater. Pau que bate em Francisco bate em Chico. Qualquer homem de bem, qualquer pessoa sem antecedentes, agora, condenada em segundo grau, começa a cumprir a pena. Onde? Em presídios que o próprio Supremo declarou como masmorras medievais.
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