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terça-feira, 6 de abril de 2021

O profano direito de cobrar dízimo na pandemia

 


Por José Nêumanne*

Ganha uma passagem de ida sem volta a Budapeste quem comprovar a legitimidade da tal Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) para exigir do ministro Kassio Nunes Marques que desprezasse decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). E, com isso, negasse autonomia para prefeitos e governadores decretarem restrições de circulação em territórios sob sua jurisdição. É como se o fã-clube de Gabriel Barbosa mandasse reabrir o cassino por ele frequentado. Ou se o clube recreativo dos ex-alunos da Universidade Federal do Piauí ganhasse o troféu perpétuo de melhor agremiação recreativa do carnaval de Teresina.

Não pense o leitor que a troça acima supera a realidade. É apenas uma pálida descrição da deletéria liminar monocrática do cidadão em questão, ao contrariar frontalmente, e na maior caradura, decisão unânime do plenário do “excelso pretório”, cada vez mais indigno da denominação pomposa, decidindo sobre o tema. Na quarta-feira 15 de abril de 2020 foi publicada a seguinte notícia, não por algum veículo da “extrema imprensa”, alvo do ódio do gabinete ao lado do de Bolsonaro, mas pelo boletim oficial Notícias STF: “O Plenário (sic) do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, confirmou o entendimento de que as medidas adotadas pelo Governo Federal na Medida Provisória (MP) 926/2020 para o enfrentamento do novo coronavírus não afastam a competência concorrente nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios. A decisão foi tomada nesta quarta-feira (15), em sessão realizada por videoconferência, no referendo da medida cautelar deferida em março pelo ministro Marco Aurélio na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6341”. Se dúvida houvesse, e nunca houve, quase um ano depois, em 5 de março passado, o mesmo STF, ao qual em teoria Marques pertence, reafirmou a decisão para que mugidos do gado bolsonarista deixem de repetir a patacoada sem sequer ruminar.

Isso não impediu, contudo, que o patrão do bolsonarismo continuasse entoando a ladainha de que a cúpula do Poder Judiciário o havia proibido de interferir no combate ao contágio do novo “coroné vírus”. Apesar de o relator, Marco Aurélio Mello, atual decano, ter insistido em negá-lo. E quando o boiadeiro faz soar o berrante, o gado o ecoa. O capetão sem noção não dá bola e apela sem parar, de forma patética, para a liberdade individual, chamando governadores e prefeitos de “tiranetes” por decretarem medidas de isolamento social para dificultar o contágio por contato. Foi então que entrou em ação a Anajure e atacou o “atentado à liberdade religiosa” na proibição de ofícios religiosos à hora em que a pandemia se propaga, causando mortandade. Hipócritas, repita-se designando as reses anônimas. A insignificante associação, que inspira o causídico favorito de Bolsonaro, PT e Centrão, defende mesmo é o direito pelo qual pastores, bispos, padres, mulás ou quaisquer agentes do comércio da falsa fé lutam: a livre cobrança do dízimo. Não é com o credo religioso que os donos dos shopping centers das seitas fazem fortuna, mas com a mudança de bolsos da moeda sonante durante os ritos.

Nunes Marques, o novo “guardião” da fé que não move montanhas, mas moedas, diz-se católico. Os “juristas” em que inspirou seu desprezo insultuoso pela decisão dos colegas do pináculo das jurisprudências se chamam evangélicos. Já que assim se designam os defensores e praticantes desse genocídio, vamos à “boa nova”, em que cristãos em geral fundamentam sua crença na conquista do paraíso celestial. João, a quem também se atribui a autoria do Apocalipse, escreveu no capítulo 2 do  evangelho que assina: “13 Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém. 14 No Templo, encontrou os vendedores de bois, ovelhas e pombas e os cambistas que estavam aí sentados. 15 Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do Templo, junto com as ovelhas e os bois; espalhou as moedas e derrubou as mesas dos cambistas. 16 E disse aos que vendiam pombas: ‘Tirai isto daqui! Não façais da casa de meu Pai uma casa de comércio!’”.

O livro bíblico dos Provérbios antecede o Novo Testamento no Velho. E foi sempre meu texto impresso favorito, desde as primeiras leituras na casa paterna e, depois, no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Campina Grande. Ali se registra: “Os olhos do Senhor estão em todo lugar, contemplando os maus e os bons” (15:3). No catecismo, ministrado pela beata Donária, fabricante das hóstias da missa do cônego Antônio Anacleto, e nas prédicas ouvidas na idade vetusta de hoje, aprendi que conversar com a divindade única e severa de hebreus e discípulos de Jesus é hábito a se adquirir em casa, na rua ou no escritório. Ninguém precisa deslocar-se até um templo para conversar com Jeová, Alá ou qualquer outra entidade máxima, que, ao contrário do que imagina o “pio” Kassio com K, não está só ao alcance do bispo Edir Macedo, dono da Record, ou do paletó do capetão, cujo segundo nome, Messias, é por este desprezado.

Nesta semana, que começou com a notícia de 331.530 mortes de brasileiros que contraíram a “gripezinha” do charlatão-mor, registrou-se que, após a ímpia bênção do douto “adevogado” Marques à realização de cultos e missas neste pior momento da pandemia de covid-19 no Brasil, a Igreja Mundial do Poder de Deus, do caubói Valdemiro Santiago, transmitiu no domingo 13 imagens de seu culto de Páscoa com a aglomeração de fiéis em seu principal templo na cidade de São Paulo. O Messias das falsas profecias e o “jurisinsulto” não querem liberdade para orar, mas para amealhar as poupanças das vítimas do culto à morte, que os anjos caídos da peste, movida a cloroquina, usam para reverenciar Satã no bezerro de ouro.

*Jornalista, poeta e escritor

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