O mal que a onda histérica da judicialização da política e da politização da Justiça fez ao Brasil é uma das piores desgraças institucionais que já se fez neste país. A lei, que era para todos, agora foi substituída pelo julgamento moral que depende do que o juiz acha ou deixa de achar e sua tutela se sobrepõe, sem voto, a qualquer um neste país.
Escrevi ontem sobre este episódio pavoroso da falecida nomeação de Cristiane Brasil e o absurdo em que estamos metidos. Ao que parece, o caso vai mesmo para as mãos de Cármem Lúcia e é de duvidar que, nelas, vá ter outro destino senão seguir o pré-julgado, mais de olho na repercussão midiática que na constituição.
Hoje, no Conjur, Lênio Streck escreve melhor, com o pensamento jurídico que deveria ser tão comum que mesmo, nós, leigos, podemos alcançar. Mas que se tornou quase uma raridade, entregues como estamos à uma corporação judicial que olha para seus “índices de popularidade” e “repercussão nos jornais e nas redes” e passou a considerar que o que diz a lei já “não vem ao caso”.
Judiciário quer nomear ministros:
sugiro para a Saúde um não fumante!
Lênio Luiz Streck, no Conjur
A coluna também poderia ter o seguinte título: Alguém que trai a esposa(o) pode ser ministro(a)?
Esta coluna não está preocupada com o destino nem do Ministério do Trabalho e nem da quase-ministra deputada Cristiane Brasil. O que quero discutir é o aspecto simbólico da interferência do Judiciário em assuntos que não são de sua alçada. Uma das grandes vantagens (talvez a única) de criticar o ativismo judicial e as arbitrariedades do Poder Judiciário no Brasil, como venho fazendo desde o século passado, é que nunca tive problema de “falta de material”. Todo santo dia aparece alguma decisão arbitrária e, mesmo que já tenha visto quase de tudo nessa vida, não paro de ser surpreendido. No meu ofício acadêmico, penso que jamais sofrerei de tédio.
Dessa vez, o juiz da 4ª Vara Federal de Niterói (RJ) resolveu suspender a nomeação da deputada Cristiane Brasil ao cargo de ministra de Estado do Trabalho, pelo fato de que essa nomeação afrontaria a moralidade pública, já que a deputada teria sido condenada em duas reclamatórias trabalhistas.
Pois bem. Dentre as 27 atribuições do presidente da República previstas na Constituição do Brasil, a primeira delas deixa claro que é de sua competência privativa nomear e exonerar ministro de Estado (artigo 84, I da CF/88). O argumento de que a deputada seria imoral para ocupar o cargo, pelo fato de que já foi condenada por duas reclamatórias trabalhistas, é redondamente frágil.
“Mas professor, o senhor quer dizer que a (Não-quase-ou-de-novo) ministra tem moral para o cargo? O senhor gosta dela?”. Não, não quero dizer isso. Nem quero dizer o contrário. Isto porque sou jurista, não sou comentarista político, e é por isso que não interessa o que eu acho, o que eu penso nesse sentido, assim como não interessa o que pensa o juiz. Juiz tem responsabilidade política e é subjacente a essa responsabilidade a tarefa de decidir, não de escolher.
É por isso, pois, que a decisão é frágil. Nem estou dizendo que a argumentação moral, a argumentação política e a retórica são frágeis. Não importa. A argumentação jurídica — essa, sim, a que importa de verdade — é frágil justamente porque se afasta da racionalidade própria do Direito. Quando a nomeação de Lula foi barrada, protestei; quando a nomeação de Moreira Franco foi barrada, protestei do mesmo modo. Por isso, protesto, aqui, mais uma vez contra o ativismo.
Legitimar uma decisão ativista porque concordamos com a racionalidade moral ali pressuposta nada mais é do que legitimar que o Direito possa ser filtrado pela moral. E se aceitarmos que o Direito seja filtrado pela moral, e peço desculpas por fazer as perguntas difíceis, indago: quem vai filtrar a moral? É esse o ponto. Alguém tem de ser o chato da história. Não podemos aceitar o ativismo que agrada. Isso é consequencialismo puro, e devemos rejeitá-lo por uma questão de princípio. Do mesmo modo um réu não pode ser condenado porque o juiz não gosta dele. E nem o réu deve ficar preso porque o juiz fundamenta no clamor social, como se houve um aparelho chamado clamorômetro. Ou como as pessoas que queriam fazer interpretação extensiva ou analogiain malam partem no caso do ejaculador (ver aqui).
Agora dito isso, tomemos emprestado o pessimismo de Kelsen por um momento e aceitemos, para fins de argumentação, que o Direito é assim mesmo e que juiz faz ato de vontade. Se a decisão for mantida (no segundo grau já foi), e o precedente tornar-se obrigatório (quanta gente adora esse stare-decisis-que-não-é-stare-decisis no Brasil, né?), gostaria de sugerir ao presidente, doravante, algumas observações na nomeação dos seus ministros. Dizem que conselho, se fosse bom, não seria de graça. De qualquer forma, lá vão eles:
Penso que se o ministro da saúde fumar, deve ser descartado. Um bom ministro da Saúde deve praticar jogging diariamente. Deve comer salada e assistir o programa Bem Estar na Globo todo dia. O ministro da saúde também não deve ter halitose. E não pode ser gordo. Heráclito Fortes seria vetado.
O ministro da Defesa precisa saber lutar judô. Ou boxe. Se for algum lutador de MMA, melhor ainda. Deve ser feita, ainda, uma pesquisa da vida do ministro, para apurar se foi alvo de bullying na escola. Se sim, deve ser descartado, afinal, que ministro da defesa é esse que sequer conseguiu se defender? É preferível nomear o valentão que fez o bullying.
O ministro das Cidades não pode ser alguém que morou no interior; e o ministro da Agricultura não pode ser alguém que morou na cidade. O ministro da Educação deve sempre dizer “bom dia”, “por favor” e “obrigado”. Se houver qualquer registro de que ele não o fez, é imoral para o cargo. O Ministério da Cultura…. bem, esse eu acho que vai ter que acabar mesmo. Sem chance de resolver esse problema. É que ele deveria saber tudo sobre Machado de Assis, Shakespeare, mas parece crime impossível.
Falando sério agora. Seríssimo: desculpem a ironia, desculpem as perguntas chatas, desculpem a insistência em coisas que, para alguns, já estão ultrapassadas, como força normativa da Constituição, legislação, enfim. Mas isso precisa ser dito. Afinal, se o juiz escolhe como quer, não há critérios, e não mais poderemos exigir o cumprimento da lei. E aí não adianta reclamar do ativismo só quando ele incomoda. (Talvez não tenha ficado claro, mas eu não subscrevo a essas teses que alguns têm levantado, inclusive em livros, de que o ativismo é bom.)
Numa palavra final: se a racionalidade jurídica for substituída pela racionalidade moral, não servimos para nada. Fechemos as faculdades de Direito e matriculemo-nos todos em faculdades de filosofia moral.
Ainda: se a decisão for mantida, teremos que, por coerência e integridade (artigo 926 do CPC) perscrutar/sindicar todos os cargos de livre nomeação. Por exemplo, o presidente do TCU quer nomear João Antônio das Neves para seu chefe de gabinete… só que ele foi multado em duas blitzes ou não pagou o carnê das lojas Renner. Pode ser nomeado? Isso é pior ou menos ruim do que ter duas reclamatórias trabalhistas? O prefeito de Pedregulho das Almas quer nomear Sofrício Ataualpa para uma secretaria…, mas ele não pagou o caderninho da venda ou foi visto saindo de um lugar suspeito de mulheres de vida difícil na periferia. Cabe ação popular? Vai liminar aí?
Eis aí, de novo, a diferença entre Direito e moral. Entre a racionalidade jurídica e os argumentos morais. Ou a moralização do Direito. Não se pode olhar a política como ruim a priori.[1] Se o presidente erra na nomeação de um ministro, o ônus é dele. É o ônus da política. Se não fosse “por nada”, não há previsão constitucional que autoriza o judiciário barrar esse tipo de ato administrativo sob argumentos subjetivos.
[1] Nesse sentido, a excelente análise de Eloisa Machado de Almeida, Folha de S.Paulo de 10.1.2018: “Suspensão de posse de ministra não deveria ser questão jurídica”.
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