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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Papa Francisco: 'Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade'

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"O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, geralmente é utilizado para minar os processos políticos emergentes e propor a violação sistemática dos direitos sociais. Para garantir a qualidade institucional dos Estados é fundamental detectar e neutralizar esse tipo de práticas que resultam da imprópria atividade judicial em combinação com operações multimidiáticas paralelas", afirma o papa Francisco, em intervenção na Cúpula Pan-Americana de Juízes, em 04-06-2019, promovida pela Pontifícia Academia de Ciências Sociais, no Vaticano sobre o tema: "Direitos sociais e doutrina franciscana”. A tradução é de Wagner Fernandes
Eis o Discurso
Senhoras e senhores, é motivo de alegria e também de esperança encontra-los nessa Cúpula, na qual deram uma citação que não se limite somente a vocês, mas sim que evoca o trabalho que realizam conjuntamente com advogados, assessores, fiscais, defensores, funcionários e evoca também aos seus povos com o desejo e a busca sincera para garantir a justiça, e especialmente a justiça social, para que possa chegar a todos. Vossa missão, nobre e pesada, pede para se consagrar ao serviço da justiça e do bem-comum com o chamado constante a que os direitos das pessoas e especialmente dos mais vulneráveis sejam respeitados e garantidos. Dessa maneira, vocês ajudam aos Estados que não renunciem a sua mais excelsa e primária função: fazer-se serviço do bem-comum do seu povo. “A experiência ensina que – assinalava João XXIII – quando falta uma ação apropriada dos poderes públicos no econômico, o político ou o cultural, se produz entre os cidadãos, sobretudo em nossa época, um maior número de desigualdades em setores cada vez mais amplos, resultando assim que os direitos e deveres da pessoa humana carecem de toda eficácia prática” (Pacem in Terris, 63).
celebro essa iniciativa de se reunir, assim como a realizada o ano passado na cidade de Buenos Aires, na qual mais de 300 magistrado e funcionários judiciais deliberaram sobre os Direitos Sociais, à luz da Evangelii Gaudium, Laudato Si’ e o discurso aos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra. Dali saiu um conjunto interessante de vetores para o desenvolvimento da missão que tem entre mãos. Isso nos recorda a importância e, porque não, a necessidade de se encontrar para enfrentar os problema de fundo que vossas sociedades estão atravessando e, como sabemos, não podem ser resolvidos simplesmente por ações isoladas ou atos voluntários de uma pessoa ou de um país, mas sim que reivindica a geração de uma nova atmosférica; isso é, uma cultura marcada pelas lideranças compartilhadas e valentes que saibam envolver outras pessoas e outros grupos até que frutifiquem em importantes acontecimentos históricos (cf. Evangelii Gaudium, 223) capazes de abrir caminhos às gerações atuais, e também às futuras, semeando condições para superar as dinâmicas de exclusão e segregação de modo que a desigualdade não tenha a última palavra (cf. Laudato Si’,53.164). Nossos povos reivindicam esse tipo de iniciativas que ajudem a deixar todo tipo de atitude passiva ou espectadora como se a história presente e futura tivesse que ser determinada e contada por outros.
Preocupa-me constatar que se levantam vozes, especialmente de alguns “doutrinários”, que tratam de “explicar” que os direitos sociais já são “velhos” - Papa Francisco
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Nos toca viver uma etapa histórica de transformações onde se põe em jogo a alma de 
nossos povos. Um tempo de crise – crise: o caráter chinês, riscos, perigos e 
oportunidades, é ambivalente, muito sábio isso – tempo de crise – na qual se verifica 
um paradoxo: por um lado, um fenomenal desenvolvimento normativo, por outro uma 
deterioração no gozo efetivo dos direitos consagrados globalmente. É como início dos
 nominalismos, sempre começam assim. É mais, cada vez, e com maior frequência, as
 sociedades adotam formas anômicas de fato, sobretudo em relação às leis que
 regulam os direitos sociais, e o fazem com diversos argumentos. Essa anomia está 
fundamentada por exemplo em carências orçamentárias, impossibilidade de generalizar
 benefícios ou o caráter-programático mais que o operativo dos mesmos.
Preocupa-me constatar que se levantam vozes, especialmente de alguns “doutrinários”, 
que tratam de “explicar” que os direitos sociais já são “velhos”, estão fora de moda e 
não tem nada que contribuir a nossas sociedades. Desse modo, confirmam políticas 
econômicas e sociais que levam a nossos povos à aceitação e justificativa da 
desigualdade e da indignidade. A injustiça e a falta de oportunidades tangíveis e
 concretas por trás de tantas análises incapazes de se colocar aos pés do outro – e
 digo pés, não sapatos, porque em muitos casos essas pessoas não têm –, é também
 uma forma de gerar violência: silenciosa, porém violenta ao fim. A normatividade 
excessiva nominalista, independentista, desemboca sempre na violência.
“Hoje vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até 
vaidosas. Cidades – orgulhosas de sua revolução tecnológica e digital – que oferecem 
inumeráveis prazer e bem-estar para uma minoria feliz..., porém os nega o teto a
 milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, e se os chama, 
elegantemente, 'pessoas em situação de rua'. É curioso como no mundo das injustiças,
 abundam os eufemismos” (Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28-10-2014).
 Parecia que as Garantias Constitucionais e os Tratados Internacionais ratificados, na 
prática, não tem valor universal.
Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na 
desigualdade - Papa Francisco
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A “injustiça social naturalizada” – ou seja, como algo natural – e, portanto, invisibilizada
 que somente recordamos ou reconhecemos quando “alguns fazem barulho nas ruas” e 
são rapidamente catalogados como perigosos ou molestados, termina por silenciar uma
 história de postergações e esquecimentos. Permitam-me dizer, isso é um dos grandes
 obstáculos que encontra o pacto social e que debilita o sistema democrático. Um 
sistema político-econômico, para seu desenvolvimento saudável, necessita garantir
 que a democracia não seja somente nominal, mas sim que possa se ver moldada em 
ações concretas que velem pela dignidade de todos os seus habitantes sob a lógica do
 bem-comum, em um chamado à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres 
(cf. Laudato si’, 158). Isso exige os esforços das máximas autoridades, e por certo do
 poder judicial, para reduzir a distância entre o reconhecimento jurídico e a prática do 
mesmo. Não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça
 na desigualdade.
Quantas vezes a igualdade nominal de muitas das nossas declarações e ações não faz 
mais que esconder e reproduzir uma desigualdade real e subjacente, que esconde que 
se está diante de uma ordem fictícia. A economia dos papeis, a democracia adjetiva, e 
a mídia concentrada geram uma bolha que condiciona todos os olhares e opções desde
 o amanhecer até o pôr do sol [1]. Ordem fictícia que iguala em sua virtualidade, porém 
que, no concreto, amplia e aumenta a lógica e as estruturas da exclusão-expulsão 
porque impede um contato e compromisso real com o outro. Impede o concreto, a 
tomada do controle do que é concreto.
Nem todos partem do mesmo lugar na hora de pensar a ordem social. Isso nos 
questiona e nos exige pensar novos caminhos para que a igualdade ante a lei não 
degenere na propensão da injustiça. Em um mundo de virtualidades, mudanças e 
fragmentação – estamos na época do virtual -, os Direitos sociais não podem ser
 somente exortativos ou apelativos, nominais, mas sim sejam farol e bússola para a
 estrada porque “a saúde das instituições de uma sociedade tem consequências no
 meio ambiente e na qualidade de vida humana” (Laudato si’, 142).
Se nos pede lucidez de diagnóstico e capacidade de decisão diante o conflito, se nos 
pede não nos deixarmos dominar pela inércia ou pela atitude estéril como quem os olha,
 os nega ou os anula e segue adiante, como se nada passasse, lavam as mãos para
 poder continuar com suas vidas. Outros entram de tal maneira no conflito que ficam 
prisioneiros, perdem horizontes e projetam nas instituições as próprias confusões e
 insatisfações. O convite é olhar de frente para o conflito, sofrê-lo e resolvê-lo 
transformando-o no enganche de um novo processo (Evangelii Gaudium, 227).
Assumindo que o conflito é claro que o nosso compromisso é o de nossos irmãos para 
dar operacionalidade aos direitos sociais com o compromisso de buscar a desmantelar
 todos os argumentos que prejudicam a sua concretude, e isso através da aplicação ou
 a criação de uma legislação capaz de levantar as pessoas no reconhecimento da sua 
dignidade. As lacunas legais, tanto em termos de legislação adequada como de 
acessibilidade e cumprimento, desencadearam círculos viciosos que privam as pessoas
 e as famílias das garantias necessárias para o seu desenvolvimento e bem-estar. 
Essas lacunas são geradoras de corrupção que encontram nos pobres e no meio
 ambiente os primeiros afetados.
Aproveito essa oportunidade para manifestar minha preocupação por uma nova forma
 de intervenção exógena nos cenários políticos dos países através do uso indevido dos
 procedimentos legais e tipificações judiciais - Papa Francisco
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Nós sabemos que o direito não é apenas a lei ou as regras, mas também uma prática
 que configura as ligações, o que os transforma de algum modo, "praticantes" do direito 

sempre que confrontado com as pessoas e realidade. E isso convida a mobilizar toda a
 imaginação legal para repensar as instituições e lidar com as novas realidades sociais
 que estão sendo vivida [2]. É muito importante neste sentido, que as pessoas que
 alcançam as mesas de você e seus bancadas sentir que vieram antes deles, que você 
vir em primeiro lugar, que você conhecê-los e entendê-los na sua situação particular,
 mas especialmente reconhecê-los em sua plena cidadania e em seu potencial para
 serem agentes de mudança e transformação. Nunca perca de vista os setores
 populares não são primariamente um problema, mas uma parte ativa da face de
 nossas comunidades e nações, eles têm todo o direito de participar na busca de
 soluções e construindo inclusive. "O quadro político e institucional não é apenas para
 evitar más práticas, mas também para incentivar as melhores práticas, estimular a 
criatividade buscando novas maneiras de facilitar as iniciativas pessoais e coletivas"
 (cf. Laudato si', 177).
É importante incentivar que desde o início da formação profissional, os operadores 
legais possam fazer contato real com as realidades, conhecendo em primeira mão e 
compreendendo as injustiças quais um dia terão de enfrentar. É também necessário 
encontrar todos os meios e mecanismos para que os jovens em situações de exclusão 
ou marginalização possam ser treinados para que possam desempenhar o papel
 necessário. Muito tem sido dito para eles, também precisamos ouvi-los e dar-lhes voz
 nessas reuniões. O leitmotiv implícito de todo o paternalismo jurídico-social vem à 
mente: tudo para o povo, mas nada com o povo. Tais medidas nos permitirão
 estabelecer uma cultura do encontro "porque nem conceitos nem ideias se amam [...].
 A entrega, a verdadeira entrega, surge do amor de homens e mulheres, crianças e 
idosos, povos e comunidades ... rostos, rostos e nomes que enchem o coração 
"(II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho 
de 2015).
O lawfare, além de colocar em sério risco a democracia dos países, geralmente é
 utilizado para minar os processos políticos emergentes e propor a violação sistemática
 dos direitos sociais - Papa Francisco
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Aproveito esta oportunidade de reunir-me convosco para manifestar a minha
 preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos dos
 países através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações judiciais. O 
lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, é geralmente usado 
para minar os processos políticos emergentes e tender para a violação sistemática dos
 direitos sociais. A fim de garantir a qualidade institucional dos Estados, é fundamental
 detectar e neutralizar este tipo de práticas que resultam de uma atividade judicial 
imprópria em combinação com operações multimídia paralelas. Sobre isso eu não paro, 
mas o julgamento anterior da mídia é conhecido por todos.
Isso nos lembra que, em muitos casos, a defesa ou a priorização dos direitos sociais
 sobre outros tipos de interesses, vocês vão lidar não apenas com um sistema injusto,
 mas também com um sistema de comunicação poderoso, que distorce muitas vezes o
 âmbito de suas decisões, vai questionar a sua honestidade e também a sua probidade,
 eles podem até mesmo julgá-lo. É uma batalha assimétrica e erosiva em que para 
superá-lo é necessário manter não só a força, mas também a criatividade e uma 
elasticidade adequada. Quantas vezes os juízes enfrentam na solidão as paredes da 
difamação e da reprovação, se não da calúnia! Certamente, requer uma grande força
 para lidar. "Felizes são aqueles que são perseguidos por praticar a justiça, porque a 
eles pertence o Reino dos Céus" (Mt 5,10), disse Jesus. A este respeito, estou satisfeito
 que um dos objetivos desta reunião é a criação de um Comitê Permanente
 Pan-Americano de Juízes e Juízas pelos Direitos Sociais, que tenha um dos objetivos
 superar a solidão na magistratura, fornecendo apoio e assistência mútua para 
revitalizar o exercício de sua missão. A verdadeira sabedoria não é alcançada com um
 mero acúmulo de dados - que é enciclopedismo - uma acumulação que acaba 
saturando e obscurecendo uma espécie de poluição ambiental, mas com a reflexão,
 o diálogo e o generoso encontro entre as pessoas, aquele confronto adulto, saudável
, faz nós todos crescermos (cf. Laudato Si', 47).
Em 2015, eu dizia aos membros dos movimentos populares: “Vocês têm um papel 
essencial, não apenas exigindo e reivindicando, mas fundamentalmente criando. 
Vocês são poetas sociais: criadores de obras, construtores de casas, produtores de
 alimentos, especialmente para os descartados pelo mercado mundial" (II Encontro
 Mundial de Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015).
 Queridos magistrados: Você tem um papel essencial: deixem-me dizer-lhe que também
 são poetas, são poetas sociais quando não têm medo de "serem protagonistas na
 transformação do sistema judicial, baseado na coragem, na justiça e na primazia da 
dignidade da pessoa humana"[3] sobre qualquer outro tipo de interesse ou justificativa.
 Eu gostaria de concluir dizendo: "Felizes são aqueles que têm fome e sede de justiça; 
felizes são aqueles que trabalham pela paz "(Mt 5,6,9). Muito obrigado!
Da Folha Impacto
Postado por Madalena França

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