A ameaça do presidente Jair Bolsonaro (PL) de não aceitar o resultado da eleição e
sua desconfiança em relação às urnas eletrônicas devem encontrar uma série de
barreiras se levadas à Justiça Eleitoral. São quase inexistentes os casos em que
houve questionamento formal às urnas eletrônicas —e em nenhum deles foi
encontrada fraude.
Por meio de uma profusão de mentiras, Bolsonaro vem fomentando a descrença
nas urnas. No entanto, ao invés de ser barrado por aqueles ao seu redor, o mandatário
tem contado com o respaldo de militares, membros do alto escalão do governo e
seu partido em sua cruzada contra a Justiça Eleitoral. As informações são da Folha
de S. Paulo.
As Forças Armadas têm repetido o discurso de Bolsonaro. Em ofício recente,
solicitaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) todos os arquivos das eleições
de 2014 e 2018, justamente os anos que fazem parte da retórica de fraude do
presidente.
Em mais um ataque direto a ministros, na última sexta-feira (15), Bolsonaro errou
ao dizer que o atual presidente do TSE, ministro Edson Fachin, foi quem tirou
Lula (PT) da prisão.
“Quem foi que tirou o Lula da cadeia? Foi o ministro Fachin. Onde está o Fachin
hoje em dia? Conduzindo o processo eleitoral. Suspeição, ou não é?”, questionou
em evento com evangélicos.
Diante do discurso de cunho golpista, quem atua no direito vê risco de que, assim
como fez Donald Trump nos Estados Unidos, também Bolsonaro tente converter
sua retórica de fraude em medidas judiciais. O ex-presidente americano pediu
recontagem de votos em diversos estados e perdeu uma série de ações.
Neste caso, ainda que o cenário se mostre bastante incerto, dado seu
ineditismo e escassez de precedentes, há também barreiras que podem
impedir ações despropositadas.
Especialistas consultados pela Folha dizem acreditar que ações que contestem
as urnas perante o TSE não devem prosperar pois necessitariam de provas de
fraude, algo que nunca ocorreu desde a adoção da urna eletrônica.
“Ter uma eleição anulada pela via judicial é algo mais do que remoto. Do ponto
de vista material, não há evidência ou notícia de fraude na urna eletrônica”,
afirma o advogado Carlos Gonçalves Júnior, professor de direito eleitoral da
PUC-SP. “E do ponto de vista formal não existe um instrumento jurídico próprio
para esse questionamento.”
Procuradores eleitorais ouvidos pela reportagem apontam que o instrumento de
guerra judicial pode ser usado por Bolsonaro apesar de a chance de êxito ser
praticamente nula.
O exemplo de Trump mostra que não existe uma preocupação com a viabilidade
jurídica das ações, mas sim uma estratégia de mobilização de apoiadores a partir
do desafio ao resultado das urnas.
Bolsonaro já tomou outras medidas polêmicas que serviram de munição para sua
base eleitoral, como o indulto ao deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) e a medida
provisória para limitar a retirada de conteúdo das redes sociais na véspera da
manifestação de 7 de Setembro no ano passado.
Em 2014, após perder as eleições para Dilma Rousseff (PT), o PSDB de Aécio
Neves levou ao TSE um pedido de auditoria especial, que foi deferido pelo
tribunal sob o argumento da transparência.
“Nas redes sociais os cidadãos brasileiros vêm expressando, de forma clara e
objetiva, a descrença quanto à confiabilidade da apuração dos votos e a
infalibilidade da urna eletrônica, baseando-se em denúncias das mais variadas
ordens”, apontava o partido.
De lá para cá, os regramentos da Justiça Eleitoral que tratam de fiscalização
e auditoria passaram a ter mais detalhamento. Pedidos de verificação extraordinária
após as eleições exigem como requisito a apresentação de fatos, indícios e
circunstâncias que os justifiquem, caso contrário podem ser negados.
O caso do PSDB não foi convertido em uma ação judicial. Apesar de não ter
encontrado fraude, o partido gerou desgaste solicitando ao TSE uma série de
procedimentos não previstos. Ao final, alegou em relatório não ser possível
auditar o processo por completo.
Especialistas explicam que o pedido de auditoria é administrativo e não tem como
função o questionamento da eleição, tampouco tem o poder de alterar seu resultado.
Atualmente, uma resolução do TSE prevê qual é a amostra de urnas a serem
auditadas em caso de ação judicial relativa aos sistemas de votação ou de
apuração, mas não especifica essa ação.
“Não seria desejável que o sistema judicial brasileiro tivesse um amplo
mecanismo de questionamento das eleições. Isso é para ser uma situação
de extrema excepcionalidade, de absurdo notável. A confiança no sistema
eleitoral é um dogma da democracia”, afirma o professor da PUC a respeito
de o terreno de contestação ser pouco explorado no país.
A depender do caso, segundo os especialistas, as possíveis alternativas
de Bolsonaro para questionamento judicial seriam um mandado de segurança
ou uma Aime (ação de impugnação de mandato eletivo). Em ambos, contudo,
ele precisaria ter provas.
O mandado de segurança exige uma prova pré-constituída, ou seja, uma fraude
claramente caracterizada.
A Aime é usada em caso de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude
—a ação de contestação teria que se encaixar na terceira hipótese.
Segundo a advogada eleitoral e professora Marilda Silveira, é preciso um mínimo
de prova para que a ação tenha andamento, o que não incluiria por exemplo,
mera retórica ou relatos testemunhais de supostas falhas. Neste caso, diz ela,
a ação provavelmente terminaria arquivada.
Silveira aponta ainda que, caso se faça uma auditoria ou contagem paralela
alegando um outro resultado que não o oficial, também não haveria nenhuma
repercussão jurídica. “Não acontece nada”, afirma. “Vão ter que pegar essa
auditoria que eles fizeram e juntar isso numa ação judicial que conteste a
legitimidade das eleições.”
O único caso de ação de impugnação envolvendo alegação de fraude na urna
eletrônica identificado pela Folha aconteceu nas eleições para governador de
2006, em Alagoas. João Lyra, que concorria ao cargo pelo PTB, tentou impugnar
o mandato de Teotônio Vilela Filho (PSDB).
O ministro relator do recurso afirmou em seu voto que não se negava a ocorrência
de inconsistências na operação de parte das urnas, mas que não havia mínima
prova de elas terem se consubstanciado em fraude. Também foi imposta uma
multa a Lyra por litigância de má-fé.
Lyra alegava, entre outros pontos, que o resultado teria sido distinto do que
diziam as pesquisas eleitorais à época e apresentou um relatório de um professor
do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) que indicaria supostas irregularidades.
Para Silveira, a jurisprudência mais recente de Aimes, ainda que não tratem de fraude
em urna eletrônica, são mais relevantes do que este caso de 2006, por ser muito antigo.
“A ação de impugnação de mandato eletivo só pode ser julgada procedente se houver
uma fraude que é caracterizada fraude grave, que leve a uma quebra de legitimidade
do processo eleitoral”, diz.
Postado por Madalena França via Magno Martins
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