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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Redação Pragmatismo Editor(a) Discurso duro de aluna em formatura de curso tradicional viraliza nas redes



Diante de um auditório lotado no Citibank Hall, uma aluna bolsista (filha de doméstica) de uma das graduações mais tradicionais do Brasil toma o microfone para um discurso duro e necessário

Discurso duro de aluna em formatura de curso tradicional viraliza nas redes
Michele Maria Batista Alves e sua mãe na colação de grau (reprodução)
Rodrigo Ratier, Nova Escola
Diante de um auditório lotado no Citibank Hall, gigantesca casa de shows da capital paulista, uma aluna de uma das graduações mais tradicionais do país toma o microfone para um discurso duro. “Gostaria de falar sobre resistência. De uma em específico, a que uma parcela dos formandos enfrentaram durante sua trajetória acadêmica”.
Ela falava em nome dos alunos bolsistas do curso de direito da PUC-SP, em que as mensalidades são de 3.130 reais. “Somos moradores de periferia, pretos, descendentes de nordestinos e estudantes de escola pública”, enumerou. Descrevendo uma experiência de solidão e preconceito, a oradora apontava as dificuldades do convívio com alunos e professores de uma outra classe social:
Resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dá. À falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado. Resistimos aos desabafos dos colegas sobre suas empregadas domésticas e seus porteiros. Mal sabiam que esses profissionais eram, na verdade, nossos pais.”

Migrante e filha da escola pública

A fala, aplaudida de pé, viralizou em áudio e vídeo nas redes sociaisNova Escola conversou com exclusividade com a autora do discurso. Seu nome é Michele Maria Batista Alves, de 23 anos. Natural de Macaúbas, cidade de 50 mil habitantes no centro-sul baiano, ela é uma dos milhares de estudantes de classe popular que chegaram à faculdade a partir da criação do Programa Universidade para Todos (ProUni), em 2004. É também um exemplo das dificuldades dessa trajetória.
Filha de mãe solteira, criada com a ajuda do avô, Michele veio para São Paulo aos 12 anos, para tratar de uma depressão. Sua família se estabeleceu numa casa alugada em Itapevi, cidade da Grande São Paulo onde mora até hoje, e de onde leva duas horas para ir e voltar ao centro da capital. A intenção inicial era regressar à Bahia, mas dois anos depois a descoberta de um tumor no pescoço adiou indefinidamente os planos. “Hoje estou curadíssima, mas por causa da doença fomos ficando. Minha mãe trabalhava de doméstica e eu comecei a ajudar no Ensino Médio como monitora numa escola infantil”, conta.
Sua história na Educação Básica foi toda em escola pública. “Estudei numa escola estadual perto de casa. Tive professores bons, mas a estrutura dificultava. Faltava água sempre, não tinha como ir ao banheiro, as classes eram lotadas e havia brigas. Eu sentia o quanto era difícil lecionar ali”, lembra ela, que diz nunca ter tido uma aula de Química – a professora só existia no papel, mas nunca apareceu. “Por tudo isso, acho muito difícil um aluno de escola pública entrar direto na faculdade.”

“Percebi que era pobre”

Ela própria teve de fazer cursinho. Duas vezes, a primeira delas num comunitário. “Foi uma experiência fundamental”, conta. “Tive vários professores de origem popular que me mostraram a diferença entre classes. Era a primeira vez que eu me reconhecia como pobre.”
A segunda foi no ingresso na PUC-SP. “Não tinha ninguém do meu círculo social. Não tinha recepção para bolsistas”, diz. No primeiro dia, uma menina contava animadamente sobre a viagem de férias à Europa. No terceiro, uma professora fez um comentário sobre métodos de estudos que deveriam ser evitados porque até a filha da empregada dela estudava assim. O impacto virou trecho do discurso:
Naquele dia, soube que a faculdade não era para mim. Liguei para a minha mãe, que é doméstica, e disse que queria desistir. Ela me fez enxergar o quanto precisava resistir àquela situação e mostrar o quanto eu era capaz de obter aquele diploma”.

Espelho da realidade

Professores da PUC confirmam a situação narrada por Michele. “Ouvi de alguns bolsistas que a maior dificuldade não era preencher as lacunas de formação, mas conviver com a discriminação por parte de colegas”, diz Leonardo Sakamoto, professor do curso de jornalismo. “Se a PUC tivesse mais estudantes como eles, faria mais diferença do que faz hoje. Alguns dos meus melhores alunos foram bolsistas.”
Os alunos beneficiários de bolsas são os mais dedicados, pois vêem no diploma da PUC a única chance de fugir de um destino cruel, previamente estabelecido”, confirma Adalton Diniz, professor do curso de Ciências Econômicas, que compara sua própria trajetória com o cenário atual. “Nasci no Jardim São Luiz, na periferia de São Paulo, fui operário metalúrgico e filho de uma dona de casa e um trabalhador que apenas completou o ensino primário. Estudei na PUC nos anos 1980 e não me recordo de ter enfrentado, de modo significativo, resistência, preconceito e hostilidade. Creio que a sociedade brasileira era mais generosa na época.”
Michele Alves seguiu em frente, mas não sem dificuldades. Passou os seis primeiros meses sem falar com ninguém. “Também por minha conta, porque antes eu era mais radical, mais intolerante. Acho que a gente tem de ser radical, mas não radical cego. Isso eu só aprendi depois, ao perceber como as pessoas me enxergavam e como eu poderia me aproximar delas. Aos poucos, fui criando métodos para dialogar com quem era diferente de mim. Ficar sem falar é muito ruim.

Choro, apreensão – e aplausos

O episódio do discurso nasceu dessa espécie de diálogo radical. Com colegas, Michele fundou um grupo para discutir a situação dos bolsistas na PUC. A formatura se tornou uma pauta importante, porque o custo da colação de grau e do baile – na casa dos 6 mil reais – era proibitivo. Uma negociação com a comissão do evento garantiu quatro ingressos para cada bolsista e o direito do grupo a ter um orador.
Michele foi a escolhida. “Fiz o texto numa única noite. Chorei muito. É um relato carregado de histórias não só minhas, mas de todos os bolsistas, que eu revivia conforme ia escrevendo. Ensaiei 12 vezes e só na última consegui ler sem chorar”, conta.
Chegou o 15 de fevereiro, data da colação, e Michele aguardava sua vez de subir ao palco. O orador oficial fez um discurso leve, contando ‘causos’ do curso e arrancando risadas da plateia. Michele gelou. “Pensei: ‘e agora, como vai ser? Vou vir com um tapa na cara, agressivo, não sei como vão reagir’”. De cima do palco, tentou procurar a família – cunhado, uma amiga do Chile, três colegas de trabalho e a mãe, aniversariante da noite. Não viu ninguém. Leu tudo de um fôlego só.
Ao terminar, ainda meio atordoada, correu de volta para seu assento. “Achei estranho meus colegas se levantando. Depois entendi. Estavam me aplaudindo”, diz ela, contente também com a repercussão de sua fala nas redes sociais. “É uma vitória saber que minha reflexão está chegando a lugares que antes não debatiam esse assunto. Quem sabe cause algum impacto na vida dos bolsistas que virão depois de mim.”
Assista ao vídeo:
Leia o discurso na íntegra:
Caros colegas, pais, professores, convidados, boa noite. Depois desse discurso animado, eu vim com um discurso rápido para o mesmo e um discurso que fala um pouco da nossa realidade aqui na PUC. Nessa noite tão especial, na qual relembramos nossa trajetória na Pontifícia, gostaria de falar sobre resistência, palavra tão usada por nós ao longo desses cinco anos. Todavia, não quero aqui abranger toda e qualquer resistência. Quero falar de uma em específico, da resistência que uma parcela dos formandos — que, infelizmente, são minoria neste evento — enfrentaram durante sua trajetória acadêmica.
Me dedico à resistência daqueles que cresceram sem privilégios, sem conforto e sem garantia de um futuro promissor, daqueles que foram silenciados na universidade quando pediram voz e que carregaram, desde cedo, o fardo do não pertencimento às classes dominantes.
Me dedico à resistência das famílias que a muito custo mantiveram seus filhos na universidade, à resistência dos estudantes que perderam, no mínimo, três horas diárias em transportes públicos. Hoje, trago a história de jovens sonhadores que há cinco anos atrás iniciaram uma história de resistência nessa universidade. Trago a história de resistência da periferia, dos pretos, dos descendentes de nordestinos e dos estudantes de escola pública.
Nós, formandos bolsistas resistimos à PUC São Paulo, aos sonhos que nos foram roubados e à realidade cruel que nos foi apresentada no momento em que cruzamos os portões da Bartira e da Monte Alegre. Nós resistimos às piadas sobre pobres, às críticas sobre as esmolas que o governo nos dava, aos discursos reacionários da elite e a sua falaciosa meritocracia. Resistimos à falta de inglês fluente, de roupa social e linguajar rebuscado que o ambiente acadêmico nos exigia.
Resistimos também à falta de apoio financeiro e educacional da Fundação São Paulo, aos discursos da vitimização das minorias e à suposta autonomia do indivíduo na construção do seu próprio futuro. Resistimos também aos insultos feitos a nossa classe, aos desabafos dos colegas sobre suas empregadas domésticas e seus porteiros. Mal sabiam que esses profissionais eram na verdade nossos pais.
No mais, resistimos aos professores que não compreenderam nossa realidade e limitações e faziam comentários do tipo: por favor, não estudem Direito Civil por sinopse, porque até a filha da minha empregada que faz Direito na ‘Uniesquina’ estuda Direito por sinopse. Essa frase foi dita por uma professora de Direito Civil no meu terceiro dia de aula. Após escutá-la, meu coração ficou em pedaços, pois naquele dia soube que a faculdade de Direito da PUC São Paulo não era para mim.
Liguei para minha mãe, empregada doméstica, chorando, e disse que iria desistir. Entretanto, após alguns minutos de choro compartilhado, ela me fez enxergar o quanto eu precisava resistir àquela situação e mostrar à PUC e a mim mesma o quanto eu era capaz de obter este diploma.
Essa história não é apenas minha, mas de todos os bolsistas formandos da PUC São Paulo. Somos os filhos e filhas do gari, da faxineira, do pedreiro, do motorista e da mãe solteira. Por isso, a eles, nossos maiores inspiradores, dedicamos nossa história de resistência nessa universidade. Que nossa história inspire outros jovens pobres a resistirem.
Avante, companheiros. Avante, pois nossa luta está apenas começando. Por fim, como nunca é tarde para dizer, ‘Fora Temer’. Muito obrigada.

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