No "país do futebol", um batalhão promete secar a seleção brasileira na Copa do Mundo pelos mais diversos motivos, que nada têm a ver com antipatriotismo
É normal, sobretudo em época de Copa do Mundo, ouvir de alguns amigos e familiares que
eles não estão nem aí para a seleção. Que preferem torcer pelo time do coração, que estão
mais preocupados com eleição. Também não é novidade o discurso de inferiorização e
pessimismo em torno dos 23 selecionados, que, de certa maneira, reflete a descrença nos
rumos do país, traduzido por Nelson Rodrigues como “o complexo de vira-lata”.
Isso sem contar os brasileiros que, por diferentes razões, escolhem apoiar outra seleção.
Mas, às vésperas do Mundial na Rússia, é impossível ignorar que o índice de rejeição e impopularidade da seleção brasileira atingiu patamares raramente observados. Muito além
em nome do seu clube, há gente de sobra disposta a secar, amaldiçoar e torcer contra o
time que um dia foi o símbolo de orgulho da nação.
Para quem gosta de bola e de Copa, chega a ser irritante escutar sermões do tipo “o país
nessa situação e o povo preocupado com futebol”, “só querem saber de pão e circo”,
“enquanto você grita gol, estão roubando nosso dinheiro em Brasília”, “que o Brasil caia na
primeira fase”, “que venha outro 7 a 1” e por aí vai… Porém, o descrédito popular que tem
colocado em xeque o poder da seleção de mobilizar massas e unificar a identidade nacional
a cada quatro anos não é fruto exclusivamente do mau humor dos que não enxergam a
poesia que emana dos gramados. As causas transcendem o campo de jogo.
A última pesquisa de torcidas do Datafolha, divulgada em abril, mostra que o número de pessoas
que não se interessam por futebol no país aumentou de 31% para 41% em relação a 2010,
quando a seleção ainda era comandada por Dunga. Praticamente o mesmo percentual de
brasileiros que desprezam a Copa do Mundo.
Chama a atenção que, no “país do futebol”, de acordo com pesquisa da MindMiners, 54% dos
torcedores consultados dizem acreditar que uma eventual conquista do Mundial pela seleção
não vai melhorar a autoestima do brasileiro. E o mais sintomático: 58% entendem que os
episódios que levaram ao indiciamento dos três últimos presidentes da Confederação
Brasileira de Futebol (CBF) afeta, de alguma forma, a vontade de torcer pela seleção.
Tempos atrás, as suspeitas de ilícitos envolvendo cartolas eram tratadas como folclore no
Brasil. Até que uma investigação do FBI desatou o Fifagate e implicou figuras como Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, menos de um ano depois do 7 a 1. Em
compasso com os escândalos de corrupção na política, a entidade que controla nosso futebol
sucumbiu na mão de dirigentes que, durante a Copa de 2014, exigiam patriotismo dos
jornalistas e torcedores que criticavam as atuações do time de Felipão. E segue sem ter a
exata dimensão de como a imagem associada a mandachuvas corruptos contribuiu para
abalar a confiança dos brasileiros na seleção.
Seleção que, inevitavelmente, acabou castigada por seguidas administrações primitivas e
nebulosas na CBF. Há décadas o esporte nacional é gerido à base da troca de favores,
politicagem barata e interesses comerciais sustentados pela lógica da propina. Por mais
vitoriosa que seja sua história em campo, não há instituição que passe incólume a tantas
mazelas fora das quatro linhas. O que ajuda a explicar a perda de apelo não só da seleção
, mas do futebol brasileiro como um todo.
Desconsiderando os comerciais de TV que apelam ao ufanismo, é cada vez mais raro
presenciar demonstrações de amor à seleção. O que também dá uma medida do ódio.
Por trás dele, irrompem jatos de frustração e raiva represadas pelo legado às avessas que a realização da Copa deixou para o país. Dos estádios superfaturados ao vexame contra a
Alemanha, tanto o cético em relação a futebol quanto o torcedor mais apaixonado
amargaram alguma dose de ressentimento. Havia caminho para uma reconciliação ao
menos afetiva após Tite assumir a seleção e resgatá-la do fundo do poço. Mas, ao longo
dos últimos quatro anos, dirigentes da CBF estavam mais preocupados em se livrar dos
escândalos de corrupção do que em reaproximar o “brasileiro comum” do futebol.
A elitização tomou conta dos estádios, torcedores mais pobres foram afastados das
arquibancadas, e a seleção virou produto cobiçado por empresas e patrocinadores que não
veem problema em atrelar sua marca a uma entidade devassada pelas denúncias de
corrupção. No meio desse processo de distanciamento, a camisa amarela da seleção ainda
sofreu com a apropriação por grupos de manifestantes que a utilizaram como instrumento
político. Neste cenário de Fla x Flu ideológico, uma parte da população agora sente ojeriza
pelo uniforme com o escudo da CBF. Rejeição que, para muitos, se estende à seleção. Pela
primeira vez no período democrático, o Brasil acompanhará uma Copa diante de tamanha polarização das correntes políticas, já que, em 2013, nos protestos que antecederam a Copa
das Confederações, e em 2014, nas manifestações contra o megaevento, a pauta de
reivindicações era bem mais difusa e menos identificada com determinada ala de militância.
Entre o apreço e o desdém por símbolos nacionais, a crise de credibilidade da seleção
brasileira também respinga nos jogadores. A maioria deles joga no exterior, tem poucos
vínculos com torcedores locais – algo acentuado pela falta de empenho da CBF em
promover jogos com preços acessíveis no país – e falha ao não se esforçar para romper
o estigma de cidadãos alienados, que, sob o status de personalidades globais, quase
sempre resumem engajamento social a ações de caridade. Naturalmente, uma hora ou
outra, torcedores como os que engrossaram o sarcástico protesto “um professor vale mais que o Neymar” se revoltam ao ver os ídolos reduzidos à figura de meros popstars.
Há quem interprete o desleixo pela seleção como um sinal de maturidade do brasileiro, que, supostamente, não se deixa mais enganar por “pão e circo” – como se fosse impensável
conciliar a paixão pelo futebol com senso crítico. Todavia, é bem provável que, com o início
dos jogos na Rússia, ainda mais se o Brasil mantiver o bom nível de atuação, o clima de
Copa se espalhe tal qual em 2014, quando o grito de “não vai ter Copa” deu lugar a euforia
nas ruas. Mas não resta dúvida de que os acontecimentos desde o Mundial passado,
principalmente os escândalos de corrupção na CBF, arranharam a imagem do nosso futebol
e, por tabela, a da seleção. Aquele que torce contra a pátria de chuteiras não é menos
brasileiro que aquele que comemora fervorosamente cada gol anotado pelos comandados
de Tite. Pois nada tem a ver com antipatriotismo.
O “torcer contra” é, acima de tudo, uma resposta dos que não se sentem representados
pelas instituições que se apropriaram da seleção. Um direito tão legítimo quanto o de quem
prefere torcer a favor, apesar das contraindicações.
Breiller Pires, ElPaís
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