Eleições municipais: lições e tarefas ditadas pelas urnas
Roberto Amaral*
As burocracias partidárias não precisam mais se agastar com a cobrança de “autocrítica”, pois o eleitor fez sua parte: a crítica. E ela veio de forma positiva e simbólica, na adoção da candidatura de Guilherme Boulos amealhando o sufrágio de 2.168.109 paulistanos (40,62% dos votos no segundo turno), fato tão auspicioso quanto vem sendo ignorado pela crônica diária. Insisto, retomando tese de artigos anteriores, que a emergência do jovem líder dos sem teto é o acontecimento mais relevante da política nacional nos últimos anos. Ela, ademais, enseja, na esquerda, um certo nível de tranquilidade quando só existiam dúvidas e temores quanto à inevitável troca de guarda. Quando os fatos a impuserem, o campo progressista já disporá de um quadro construído no movimento popular e bem testado na campanha política e nas urnas, em condições, portanto, de colocar-se na primeira liça do processo político.
Nestes termos a esquerda tem o que comemorar.
Mas isto não é tudo, pois o outro lado da mesma moeda mostra a derrota da esquerda. E perdeu mesmo, pois na disputa de prefeituras de capitais haverá de contentar-se com a eleição de Edmilson Rodrigues (PSOL), em Belém. A centro-esquerda ganhou, a duras penas, em Fortaleza (apoiada pelo DEM e pelo PSDB) e no Recife, ao cabo de campanha em que seu candidato não hesitou em lançar mão do antipetismo. Na capital fluminense, o candidato da direita derrotou o candidato do bolsonarismo. O resto do mapa assinala a vitória da direita dita pragmática, que se aparta da extrema-direita bolsonarista, o que pode ser um avanço tático. Os manuais de redação da grande imprensa, ainda em campanha, dão novos nomes a bois antigos, chama de “centro” a direita, para poder chamar de direita a extrema-direita. Se a direita é uma afirmação política, “centro” é apenas uma abstração, nome de fantasia de uma direita que se pensa “civilizada”, e, pretensamente ilustrada, ainda se incomoda com o primarismo do capitão e sua grei de toscos e parvos. Mas era preciso anunciar o réquiem da esquerda (agora não mais só do lulismo) para poder dizer que o bolsonarismo é o grande derrotado, do ponto de vista eleitoral, o que pouco significa, pois ainda conserva a aprovação de 40% de nosso povo. Uma vez mais a aparência (o desgaste político) esconde a essência do fenômeno, que é a projeção do bolsonarismo em camadas significativas da sociedade, as quais, segundo entendemos, nada têm a ganhar com a onda reacionária.
É preciso considerar que o mostrengo político em curso transcende ao capitão, pois se trata da materialização do grande projeto da direita brasileira, reativado desde 1954, quando chega ao poder (seu representante não era Café Filho, o eventual presidente, mas Eugênio Gudin, o ministro da Fazenda) como reação ao estado desenvolvimentista de Getúlio Vargas. Depois da ditadura de 1964 e da Nova República, o neoliberalismo retoma a carga com Fernando Collor e volta senhor de si com FHC, que promete “o fim da era Vargas”., Encerrado o ciclo lulista, Temer e Bolsonaro se aprestam na implantação do projeto renegado sucessivamente pela soberania popular nas eleições de 2002, 2006, 2010 e 2014, e o neoliberalismo se impõe tanto na contramão da herança de Vargas, quanto na negação do petismo e do lulismo, sua versão moderna e moderada.
Nada disso compreenderam o PT e os demais partidos, desprezando a grande oportunidade de politizar o pleito municipal de 2020 (que tinha tudo para ser nacionalizado) e, de erro em erro, terminando por fazer o jogo da direita, para o qual já contribuíam desde quando, em nome da “governabilidade” de 2002, haviam renunciado ao embate político com as forças conservadoras.
Postado por Madalena França.
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