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domingo, 20 de setembro de 2020

DRAUZIO VARELLA: DEVEMOS TER ORGULHO DO SUS

 

Do blog do professor Edgar Bom Jardim

Postado por Madalena França.


Faz poucos dias o doutor Drauzio Varella, colaborador fiel de CartaCapital, velho e muito querido amigo, me liga para dizer: “Dou a mão à palmatória”. Pergunto: “A que você se refere, à minha costumeira desconfiança em relação ao destino do Brasil?” Explica o caro interlocutor: “Nas nossas discussões sempre tive uma visão muito mais otimista em relação à sua, atribuía-lhe a visão a uma certa amargura, mas confesso que, nos últimos tempos, tenho achado que você estava mais certo do que eu”.

Não sei se a palavra amargura foi bem escolhida. Para quem entendeu que era este o país do futuro e assistiu à vagarosa, mas inexorável negação da ideia, talvez se trate, sobretudo, de uma imensurável decepção.

O texto que se segue é de uma entrevista com o médico-cientista, autor de livros importantes, um deles com versão cinematográfica de Hector Babenco sobre a chacina do Carandiru, que ele frequentou assiduamente para prestar assistência aos presos.

No Brasil, ele virou o herói do combate infatigável à Aids, lição bem-sucedida com repercussão global. Permito-me apenas dizer que o sistema de saúde mais extraordinário que conheço é o Welfare State, em vigor em 23 países da União Europeia, certamente o mais amplo e democrático, no sentido de que a condição social não entra em jogo em momento algum e diz respeito ao tratamento médico em geral, sem exclusão do preço dos remédios, e a escola gratuita.

Mas esta situação também decorre das diferenças profundas, políticas, econômicas e sociais entre Brasil e Europa. Não é o caso do Reino Unido, citado pelo entrevistado, porque o UK prefere agir por conta própria.

 

Mino Carta: A esperança do mundo concentra-se na vacina. É esta a solução?

 

Drauzio Varella: Não é uma solução milagrosa, primeiro a vacina vai proteger 98% dos infectados? Nenhum cientista diz isso. Quem tomar a vacina vai ter uma resposta duradoura? A gente também não sabe. Sabemos, isto sim, que a vacina ítalo-inglesa, que está sendo produzida em Oxford e comercializada pela AstraZeneca, vai precisar de duas doses. A vacina da Cynovac, que está sendo testada pelo grupo do Butantã, também vai precisar de duas doses. Será que a imunidade vai ser suficiente para proteger a gente por anos? Nós não sabemos. A vacina da gripe, por exemplo, tem de ser tomada todos os anos. Eu acredito haver uma alternativa para o desenvolvimento de uma substância antiviral. Está claro que não é a cloroquina. Ao contrair uma gripe comum, você começa o dia com o corpo meio quebrado, meio cansado, no outro dia você está com febre, que pode ser alta, coriza, dores no corpo. Em 24, 48 horas, desenvolvemos a gripe. Mas com esta doença, não. Com esta doença a pessoa pega o vírus. Qual é o sintoma? Você vai tomar café e não sente o perfume, fica um pouco enjoado, mas a primeira semana decorre mais ou menos normalmente, nos primeiros cinco dias, a pessoa tem sintomas gripais muito leves até. Depois do quinto, sexto, sétimo dia, ela piora, abre-se então uma janela de tratamento. O ideal seria contar com um antiviral específico com alta eficácia, como temos as drogas para Aids. Diziam que para Aids era impossível conseguir e hoje você pega uma pessoa HIV positivo, toma a medicação e o paciente vive 20 anos sem manifestar a doença. Nós temos drogas altamente eficazes de alta potência contra o HIV, então por que não podemos desenvolver outras contra o coronavírus?

 

MC: E que dizer da segunda onda que ocorre em muitos países?

 

DV: Olha, eu tenho muita dificuldade em aceitar essa chamada segunda onda como uma entidade separada da primeira. Acho que, na verdade, os países estão vivendo a mesma onda que começou lá atrás e tem períodos de calmaria. A partir do momento que as pessoas começam a se movimentar e a se aglomerar, a doença volta a atacar mais gente. Também acho que é uma onda única que responde às aglomerações, aumentando o número de casos e infecções. Se fazem isolamento, caem os níveis de infecções e de casos confirmados. O exemplo de Israel é bem típico, lá eles voltaram ao lockdown completo porque os casos estão aumentando, como estão aumentando também na Espanha e na França. Aquela ideia de que teríamos um pico e do pico os casos cairiam rapidamente, e pronto, estaríamos livres. Com a gripe espanhola foi assim, ela chegou dizimando populações. Em dois meses, no surto de 1918, a doença foi embora. Isso porque a gripe infectou uma massa muito grande e aí passa a ter essa imunidade coletiva mais depressa. Mas com o coronavírus não vai ser assim, as infecções podem seguir persistindo.

 

MC: E o Brasil diante disso tudo?

 

DR: Eu queria falar um pouquinho do SUS. Eu me formei na faculdade de medicina em 1967, o SUS foi criado em 1988, portanto, fiz medicina 20 anos antes da criação do SUS. Havia então quem trabalhava com carteira assinada e tinha direito ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS). Esses eram atendidos e tinham direito à assistência médica, mas os que não tinham carteira assinada, categoria que envolvia todos os informais, as mulheres que trabalhavam fora de casa naquele momento, o trabalho doméstico não contava, toda população rural quando a maior parte dos brasileiros vivia no campo, e esses não tinham direito a coisa alguma, eram considerados indigentes, a palavra usada. Lembro de ver prontuários de doentes carimbado “indigente” na folha de trás, porque essas pessoas dependiam da caridade pública, ou eram atendidas nas Santas Casas de Misericórdia se houvesse vaga. Então, um bando de lunáticos apareceu dizendo “vamos colocar na Constituição de 1988 que saúde é um direito de todos”. Na época eu também me perguntei: de onde vão sair os recursos? O dinheiro veio depois, criaram o sistema e a necessidade de mantê-lo. Nenhum país com mais de 100 milhões de habitantes ousou oferecer saúde pública para todos, nenhum país. A Inglaterra, por exemplo, tem o National Health System (NHS). Todos os ingleses são orgulhosos do NHS, mas nós não temos nenhum orgulho do SUS. Agora, organizar o NHS em um país rico com 60 e pouco milhões de habitantes, todos com alto nível educacional, até eu organizo. Quero ver organizar saúde para todos em um país com 210 milhões de pessoas, com desigualdade social e regional profunda como o nosso. Conseguimos tudo isso em apenas 30 e poucos anos, e os ingleses, num país rico, fizeram isso depois da Segunda Guerra Mundial. Temos de ter orgulho do nosso Sistema Único de Saúde, e o que dói mais é que ele tem tudo de que precisa para funcionar direito. Desde atenção básica, que é o programa de assistência à saúde da família, com os agentes de saúde, em que cada agente acompanha cerca de mil famílias Essas equipes contam com uma auxiliar de enfermagem, uma enfermeira e um médico. O programa de assistência à saúde da família tem condição de resolver 90% dos casos sem os doentes irem parar nos hospitais.

 

MC: Do que depende?

 

DR: Da organização e da gestão. Nós temos tudo organizado e falta o quê? Uma política de saúde, não temos uma política de saúde. Antes deste governo, nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde, o tempo de permanência do cargo é de dez meses. Como alguém, em dez meses, consegue criar uma política de saúde? Ele cai fora e o outro que entra não é um sanitarista preparado, é uma troca política. Vem um outro, de outro partido, que não entende nada de saúde e é jogado lá porque os governos têm muito apetite pelo sistema de saúde, porque em jogo há verbas enormes. Quando tivemos a epidemia, veja o que aconteceu com o SUS. A capacidade que o SUS teve de se organizar, montar UTIs, comprar respiradores, ventiladores mecânicos, com toda falta que faziam no mercado. Em São Paulo não ficou uma pessoa sem acesso a uma UTI. Nos outros estados foi mais difícil, mas foi possível montar uma organização toda. Então tudo é uma questão de vontade política. Quando perguntamos às pessoas qual o melhor programa de distribuição de renda, dizem que é o Bolsa Família, que é uma ajudinha comparado com o SUS, que investe 250 bilhões de reais.

 

 

 

MC: No combate à pandemia, podemos segurar a volta dos trabalhadores para os escritórios?

 

DR: Aqueles que têm condições de realizar seus trabalhos a distância devem procurar mantê-los, porque, quanto mais tempo conseguirem segurá-los, melhor será. Serão menos pessoas infectadas. Além do que as empresas estão aprendendo muito bem, com esta pandemia, a baratear seus custos.

 

MC: Esta vocação de buscar o melhor para o País começou quando?

 

DR: Como estudante de medicina o anseio era acabar com as endemias rurais, nossos grandes problemas de saúde, doença de Chagas, febre amarela, e ao mesmo tempo construir um país mais justo, com menos desigualdade social, construir cidades – Brasília foi fundada em 1960 – construir universidades, a Universidade de Brasília é dessa época, e muitas outras que surgiram pelo País. Eu e os meus colegas tínhamos este sonho mesmo. O Brasil teve fases em que começou a melhorar, embora as coisas caminhassem lentamente, mais do que a gente gostaria. De repente, sofremos um retrocesso pesado, mais ainda hoje. Quem haveria de prever que as coisas ficariam tão mais difíceis? O País está cheio de ódio, nunca vi tamanho ódio no Brasil. É uma verdadeira cultura do ódio que se espraiou entre nós. E o que me entristece demais é confrontar todas as benesses que a natureza nos deu, com esta posição de pior país do mundo em distribuição de renda. Pega um país como o Líbano, que importa 90% dos alimentos que consome, se analisarmos em detalhes, concluímos ser praticamente inviável no mundo moderno sobreviver com 4 milhões e meio de habitantes, inchado pela chegada de 1 milhão de refugiados sírios, além dos problemas que o assoberbavam. Nós não temos nada disso e a epidemia está mostrando quando um desafio deste porte se instala em um país com tamanha desigualdade social. É imoral, porque é imperdoável este desequilíbrio num país rico como o nosso. Você forma cinturões de absoluta miséria em volta das nossas cidades, quando a degradação então começa pelo centro.

 

MC: Enquanto isso, a Amazônia queima, você vai lá com frequência, como é sabido.

 

DR: É um trabalho de pesquisa, de caráter universitário realizado pela Universidade Paulista (Unip), que Riad Younes e eu coordenamos, um projeto de pesquisa com plantas para produtos naturais, para identificar atividades antitumorais e antibacterianas, contra bactérias resistentes nos extratos retirados da flora amazônica, especificamente na região do Rio Negro. Voei para lá mais de cem vezes. Quando das primeiras vezes, mais da metade dos voos de São Paulo para Manaus era por cima da floresta. Depois de uma hora e meia de voo, já sobrevoávamos a floresta. Mas esta distância encurtou muito. Hoje, pode-se viajar duas horas e meia vendo só campos.

 

MC: De uns tempos para cá, os incêndios estão se deslocando para o Pantanal.

 

DR: Vou pegar uma região que conheço um pouco, a do Rio Negro. Lá o nosso estudo prevê a criação de um quadrado de 100 metros por 100 metros, um hectare, e neste espaço plaqueamos árvores com mais de 10 centímetros de diâmetro, é um critério que os botânicos utilizam. Nessa região, você chega a ter 100, 200 espécies de plantas diferentes. É comum que o leigo imagine árvores enormes. De fato, existem, mas são raras. A briga ali é pelo sol, então a árvore não tem de gastar energia desenvolvendo um tronco muito grosso, ela quer é subir para encontrar a luz solar, a briga é essa. Então os troncos são muito duros e finos, com galhos e folhas secas. Quando a floresta é destruída, formam um tapete que esconde um areão, é uma terra de baixíssima qualidade. Quando você corta ou queima e o sol bate ali, o solo estorrica e acaba de queimar aquela camada. E quando você destrói esta camada, também destrói o que está debaixo da terra, as bactérias, os fungos, os vírus, enfim, tudo que está ali para que as árvores cresçam. Por outro lado, quando você destrói esse ambiente, pode esquecer porque ele não recompõe mais. Podemos até plantar eucalipto, mas não conseguiremos refazer a floresta que existia ali. Saindo de Manaus e subindo o Rio Negro, existem apenas umas casinhas de ribeirinhos, e acabou. Temos ali uma floresta que sempre foi assim, desde que Pedro Álvares Cabral chegou por aqui. Qual é o país que tem uma riqueza destas nas mãos? E vai destruir esta riqueza para que, com que finalidade? O que vai valer isso que está sendo construído no lugar da floresta daqui a alguns anos? E o que vale a floresta hoje e o que valerá nos próximos anos para as futuras gerações? Vamos ter um país com essas riquezas enormes e com essas matas intocadas, mas é uma irresponsabilidade enorme e absurda o que estamos fazendo. Estamos comprometendo o futuro das novas gerações, dos nossos filhos, dos nossos netos.

 

MC: Voltemos ao coronavírus.

 

DR: Nesta fase atual, você não consegue manter o isolamento. Vai ter apenas o isolamento das pessoas que estão conscientes, que não querem pegar o vírus e que têm condições de se isolar. Mas o número de brasileiros nas ruas aumenta cada vez mais. Se a gente conseguisse convencer a população da importância de usar máscara e evitar aglomerações na medida do possível, já faria uma boa diferença, porque com isso vai diminuindo a disseminação do vírus. O problema se dá quando ocorre uma contaminação desenfreada e muita gente precisa correr para os hospitais. Por isso acho que o sistema público de saúde brasileiro operou grandes milagres no decorrer desta epidemia. Já disse que o SUS se reinventou neste quadro de pandemia, mas é um sistema empobrecido que não conta com uma gestão adequada. E temos de evitar que isso aconteça, porque, quando vejo estas cenas nas ruas, os bares lotados do Leblon, o que acontece na cidade inteira e não apenas nos bairros ricos. Temos ainda os jovens que vão para as ruas e se aglomeram, fazem festas, e temos também os pancadões nas principais cidades brasileiras. E o que acontece com eles? Simplesmente levam o vírus para suas casas, atingindo pessoas inocentes e vulneráveis. Assim, acho que a gente não pode se iludir, o número de mortes vai continuar caindo, a não ser que aconteça um rebote, mas isso não é possível prever. Vai cair devagar, como vem caindo. A média móvel está caindo, mas quantas pessoas morrem, em média, por semana no Brasil? Quase 700, mas um pouco antes morriam mil. Aí dizem que é melhor morrer 700 do que mil. Se formos por esse raciocínio, estamos indo muito bem.

 

MC: Você acredita nos números oficiais?

 

DR: Só tem um número oficial, que merece um pouco mais de confiança, é o número de mortes. O número de infectados não merece nenhum tipo de confiança. Por quê? Porque temos dois tipos de testes: o colhido no nariz, teste chamado RT PCR, que te dá o diagnóstico da Covid-19. Se você colhe o material para exame e dá positivo, é porque você estava com o vírus no nariz e o exame detectou o RNA do vírus. Então você está infectado e ponto final, mas ele só indica coisas diferentes. É somar abacate com laranja. É somar RC PCR com o da ponta do dedo que pode ser feito em farmácia, em qualquer lugar, até mesmo em posto de gasolina. Então esse número não tem qualquer interesse. E depois o número de infectados depende da quantidade de pessoas testadas. Se eu não testo ninguém, qual a quantidade de pessoas infectadas no Brasil? Zero, pois não testei. Então, não tem valor algum.

 

MC: A pandemia carrega várias incógnitas. Uma delas: a volta às aulas.

 

DR: Temos aí uma realidade que decorre das condições de vida da nossa população. Há crianças que têm acesso à banda larga e podem acompanhar todas as aulas até de casa. Não há como comparar com a população que mora em condições precárias, não tem internet, não tem computador, não tem iPad. Aliás, não tem uma alimentação adequada, quando a criança frequentava a escola, a alimentação era melhor. Segundo os educadores, se você não estimula estas crianças no momento certo, vai provocar um déficit cognitivo, e elas vão arrastá-lo por muito tempo, às vezes por anos, algumas definitivamente. Mas aí abre-se o bar e não a escola. Abre-se o shopping center e a escola fica fechada. Existe até o problema dos bancos escolares, quando as crianças têm de ficar distantes umas das outras. Há escolas que podem dar aula no pátio, a céu aberto, as crianças devidamente distanciadas. Mas quem conhece a periferia sabe que muito poucas escolas contam com esta disponibilidade. Como agir com estas crianças todas? Há de ser definida uma estratégia adaptada a cada escola, enquanto este assunto é tratado pelos governantes de uma forma muito irresponsável. Combina-se uma data, chega a hora e se verifica que não há condições de volta, já que medida alguma de proteção foi adotada. E assim vamos em frente sem solução para uma questão vital. Foi tomada uma decisão: as aulas vão começar em agosto. Chega julho e o aviso: vamos começar em setembro. Chega setembro: não, vamos começar em outubro. Está claro que este assunto não pode ser tratado desta maneira. Também neste caso necessitamos de autoridades capazes de definir um programa claro, baseado nas condições do País.

Professor Edgar Bom Jardim - PE

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