Flavio Fligenspan (*)
Quando Temer propôs e aprovou a “lei do teto de gastos” ele estava, simultaneamente: (i) cumprindo a tarefa que lhe foi designada pelos golpistas liberais que pregam a redução da atuação do Estado e (ii) se eximindo de governar, isto é, de determinar prioridades e de arbitrar conflitos dentro do setor público e entre setor público e setor privado. Era mais fácil, muito mais fácil, colocar um teto (baixo) no gasto público e deixar que se digladiassem os agentes direta e indiretamente afetados por esta restrição. Quem tivesse mais força política ganharia a disputa e a população mais desassistida certamente perderia com as restrições nas áreas sociais.
Difícil é governar, decidir a alocação do gasto a favor e contra setores diversos, administrar os conflitos, implementar projetos de aumento de produtividade no setor público, avaliar a qualidade e os efeitos dos programas governamentais. É claro que isto sempre passou longe do Governo Temer, seja por incapacidade técnica, seja por falta de vontade política. Afinal, ele não assumiu para isto.
Com a “lei do teto” estava certo que o conflito dentro do setor público iria acontecer, mais dia, menos dia. Não cabia pensar se ele ia acontecer, mas quando se manifestaria de forma mais aguda. Talvez a primeira grande manifestação tenha acontecido na semana passada, com a proposta de reajuste dos vencimentos dos juízes do Supremo (STF), sendo conhecida sua repercussão sobre os vencimentos de todo Poder Judiciário nas esferas federal, estadual e municipal. Feitas as contas, rapidamente se chegou à casa dos bilhões de reais, justamente num momento de grave crise econômica e elevado desemprego. Neste ambiente, ninguém fora do Judiciário apóia tal reajuste, ainda que ele signifique apenas a reposição da inflação passada. Afinal, esta seria a hora de todos darem a sua cota de sacrifício; e isto vale mais ainda para os mais bem remunerados.
Se o Judiciário aumentar seu gasto, os outros poderes terão que diminuir sua fatia, para tudo caber no limite dado pela “lei”. E o governo se exime da responsabilidade de decidir, de alocar recursos onde melhor lhe pareça, enfim, se exime de arbitrar e assumir responsabilidades. Por fim, se exime de governar. A sociedade que decida, através do jogo de forças políticas. Nada surpreendente, este é o espírito da nova regra; ela marca a redução do tamanho e do poder do Estado, tal como encomendado a Temer.
A “lei do teto”, ao reajustar despesas apenas de acordo com a inflação, ignora a necessidade de aumentar a oferta de serviços públicos no mínimo de acordo com o aumento da população. Regra básica, o aumento da população exige maior quantidade de serviços, para não falar em melhora de qualidade, expansão da rede etc. É claro que há uma alternativa que atende à racionalidade econômica, qual seja, o aumento da produtividade e da eficácia dos serviços públicos. Mas isto envolve avaliação das rotinas, treinamento de pessoal, capacitação e gasto em novos equipamentos, ou seja, isto requer investimento público, justamente a variável que fica sempre em último lugar nas prioridades e em primeiro lugar nos cortes.
Não há dúvida que existe muita margem para melhorar a prestação de serviços públicos no Brasil e fazer mais e melhor com custos menores, mas isto exige vontade e competência para governar, por um lado, e investimento, por outro. Tudo que está muito distante nesse momento. E com a “lei” e as limitações por ela impostas fica ainda mais difícil romper o ciclo vicioso. Não por acaso, apoiadores entusiasmados da nova regra, pessoas e partidos que ajudaram a construí-la e participaram do convencimento dos parlamentares que a aprovaram, rapidamente estão mudando de posição diante da possibilidade de assumirem o poder e ter que governar com tamanha limitação.
Veja-se a posição do economista assessor do PSDB na campanha eleitoral para a Presidência que ora se inicia. Para além do discurso vazio da redução do tamanho do Estado, está o entendimento do quanto é absurda a “lei do teto” num país ainda tão carente da atuação estatal para atender às necessidades básicas da população mais carente. Menos mal, mas cabe perguntar de que lado estavam estas vozes quando se discutiu o projeto e se apontou a irresponsabilidade que ele significava.
(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
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